Despertar antes que seja tarde. Com esse título eloquente, o mais recente relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad)1 não dá margem a dúvidas com relação à necessidade de urgentes e radicais mudanças nas orientações científicas e políticas que moldam os modernos sistemas agroalimentares. O relatório reitera e aprofunda conclusões de outros documentos de igual relevância, divulgados pelas Nações Unidas depois da crise alimentar de 2008.
Ao enfocar, por diferentes ângulos, os críticos desafios que se apresentam para a agricultura no século 21, esses documentos concordam que a matriz científica e tecnológica da modernização agrícola é incapaz de oferecer respostas adequadas à tendência de acentuação das crises alimentar, energética, ecológica e climática que se alastram como fenômenos de proporções globais na história ambiental contemporânea.
Como afirma o documento da Unctad, “soluções rápidas” baseadas no slogan “mais alimentos com menos custo para o meio ambiente” não serão suficientes para o equacionamento dessa conjunção de crises. Para seus autores, as tragédias da fome e da desnutrição, que voltam a ocupar lugar de destaque na agenda política internacional, não podem ser atribuídas à deficiência de produção alimentar. De fato, segundo as Organizações das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a demanda por alimentos, por parte da população mundial, poderia ser sobejamente atendida com os volumes atualmente produzidos. Portanto, os argumentos que defendem que somente uma Segunda Revolução Verde seria capaz de incrementar a produção agrícola para alimentar o planeta não conjuminam com o diagnóstico que aponta para a persistência da fome em um mundo com abundância de alimentos.
Uma situação paradoxal como essa exige transformações profundas nos sistemas de produção, distribuição e consumo de alimentos. Além de assegurar a manutenção de níveis produtivos adequados, é preciso simultaneamente promover maior equidade na distribuição da riqueza social gerada no setor agroalimentar. É sem dúvida fundamental aumentar o poder de compra das parcelas mais empobrecidas das sociedades contemporâneas, mas é preciso também elevar os níveis de autossuficiência em alimentos de significativa parte das populações rurais, nas quais, também paradoxalmente, concentram-se 70% do universo de famintos e desnutridos no mundo.
No presente contexto histórico, em que os níveis de segurança alimentar e nutricional oscilam de forma errática de um ano para o outro e de região para região, a produção e o abastecimento de alimentos apresentam-se como os elos mais vulneráveis na articulação entre a crise econômico-financeira e a crise ecológico-climática. Nesse sentido, a fome em meio à abundância revela a existência de uma única crise de caráter sistêmico, complexo e multidimensional, ao mesmo tempo em que explicita o fato de que a agricultura industrial está no centro desse cenário de crise, no qual assume o duplo papel de algoz e de vítima.
Para caracterizar o impasse criado por essas crises inter-relacionadas, que se alimentam reciprocamente em círculos viciosos, os pesquisadores envolvidos na elaboração da Avaliação internacional sobre conhecimento, ciência e tecnologia agrícola para o desenvolvimento (IAASTD)2 adotaram outra sugestiva imagem para intitular seu trabalho: A agricultura em uma encruzilhada.
Segundo esse extenso estudo, o caminho mais seguro a ser trilhado diante dessa encruzilhada é aquele que busca alavancar a multifuncionalidade da agricultura para guiar as trajetórias de desenvolvimento rural. Na prática, isso implica superar a perspectiva produtivista veiculada pelo paradigma da modernização agrícola e passar a adotar uma abordagem multifocada que desenvolva e oriente as transformações nos padrões de organização social, técnica e econômica dos agroecossistemas. Para os autores da IAASTD (2009), avanços nessa direção exigem, entre outras medidas políticas e institucionais, a reformulação dos sistemas de produção de conhecimentos, ciência e tecnologia para o desenvolvimento agrícola, de forma que a complexidade dos sistemas agropecuários em contextos socioambientais diversos seja contemplada. Já no Sumário executivo do relatório-síntese, lê-se:
Durante muitos anos, a ciência agrícola se concentrou em desenvolver tecnologias que melhorassem a produtividade das explorações, onde os regimes de mercado e institucionais estabelecidos pelo Estado eram os principais indutores da adoção de novas tecnologias. O modelo geral consistiu em inovar continuamente, reduzir os preços ao nível das unidades produtivas e externalizar os custos [...] Frente aos novos desafios que enfrentamos hoje, cada vez mais se reconhece, nas organizações oficiais do âmbito da ciência e da tecnologia, que é preciso revisar o modelo atual de conhecimento, ciência e tecnologia agrícola. (IAASTD, 2009, p. 3).
Em seu informe, apresentado ao Comitê de Direitos Humanos da Assembleia das Nações Unidas3, Olivier de Shutter, relator especial da ONU pelo Direito à Alimentação, corrobora com as orientações dadas pela IAASTD, além de indicar as potencialidades da Agroecologia como o enfoque científico adequado para reorientar os sistemas de geração de conhecimentos e de alternativas tecnológicas para a agricultura. O documento refere-se à Agroecologia como “um modo de desenvolvimento agrícola que não só apresenta estreitas conexões conceituais com o direito humano à alimentação, mas que, além disso, tem apresentado resultados na realização desse direito junto a grupos sociais vulneráveis em vários países”.
É diante desse contexto internacional de crescente questionamento sobre os rumos da agricultura e da alimentação que a experiência brasileira no desenvolvimento e na institucionalização da perspectiva agroecológica desponta como referência singular. O lançamento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) pelo governo federal representa um marco nessa trajetória. Entre outros aspectos, sinaliza o reconhecimento oficial da existência de um movimento de grande expressão social, que há décadas vem se enraizando nos sistemas produtivos da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais, e que, a partir desse patamar, mobiliza o mundo do ensino e da pesquisa acadêmica, inspirando também a instituição de políticas e programas em órgãos governamentais dos três níveis federativos.
Como tudo na História, os desdobramentos da Agroecologia ainda são indefinidos. O caminho se faz ao caminhar, diz o poeta. Várias sociedades do passado enxergaram, nas mais agudas crises, oportunidades para acelerar a História em direção a futuros promissores. Mas nem sempre foi assim. O colapso foi o destino encontrado por muitas sociedades que não perceberam a gravidade terminal de suas crises ou que não foram capazes de formular e pôr em prática as soluções para superar os dilemas que elas mesmas criaram para si.
Os documentos da ONU apresentam graves advertências e instam à ação emergencial. O sentido de urgência neles reclamado só se traduzirá em medidas efetivas se puder catalisar uma vontade coletiva ativamente orientada a promover a Agroecologia como uma prática social, como um enfoque científico e como um movimento político. Somente pela integração dessas três formas de expressão da proposta agroecológica é que as necessárias e urgentes transformações no regime agroalimentar dominante ganharão vigência histórica.
A Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) insere-se nessa trajetória evolutiva, procurando fomentar e adensar a interação entre os variados atores sociais que atuam na construção e na disseminação de saberes necessários à fundamentação teórica da prática agroecológica. Coerente com a epistemologia aberta ao diálogo de saberes propugnada pelo enfoque agroecológico, a ABA-Agroecologia valoriza os distintos âmbitos sociais nos quais esses saberes são produzidos, questionando, assim, a pretensa exclusividade do conhecimento válido atribuída ao mundo acadêmico. Para tanto, atua no propósito de dar visibilidade e de extrair ensinamentos das redes interinstitucionais de construção do conhecimento agroecológico que se proliferam pelo Brasil afora, enraizadas territorialmente na realidade dos agroecossistemas. É por meio desse processo social emergente que a Agroecologia vem fazendo seu caminho e demonstrando, em âmbitos locais, a sua consistência enquanto resposta efetiva à crise multifacetada gerada pelos modernos sistemas agroalimentares globalizados.
Em cooperação com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a ABA-Agroecologia toma a iniciativa de lançar esta Coleção Transição Agroecológica, com o objetivo de divulgar conhecimentos e reflexões críticas elaboradas no curso dessa trajetória. O lançamento deste projeto editorial pretende contribuir para fecundar novas ideias e práticas, que permitam acelerar o ritmo e ampliar a escala da rica experiência histórica do campo agroecológico brasileiro.
Paulo Petersen
Presidente da Associação Brasileira de Agroecologia