Introdução

Princípios e reflexões conceituais para a Transição Agroecológica

João Carlos Costa Gomes
William Santos de Assis

Os textos que compõem este primeiro volume da Coleção Transição Agroecológica deverão sugerir muitas ideias e provocar reações, inclusive algumas que podem estar intimamente relacionadas com as convicções pessoais dos leitores. O que é normal em um período de crise, em que alguns tentam contribuir para a superação das anomalias do paradigma dominante, no sentido original de T. Kuhn, e outros fingem ignorá-las. Como dizia Martínez Miguelez (1993), aqueles que não se dão conta das transições paradigmáticas estão meio perdidos entre a “desorientação epistemológica” e a “feliz ingenuidade”.

Para os leitores deste primeiro volume, uma primeira constatação óbvia é a interdependência entre os temas abordados. A análise dos caminhos da Agroecologia no Brasil (Capítulo 1) está profundamente contaminada pela construção do conhecimento agroecológico (Capítulo 2) e vice-versa. Ambos são processos dinâmicos, complexos, transversais, transdisciplinares e coevolutivos como, afinal, é a própria Agroecologia. Esses dois temas, por sua vez, estão vinculados, desde sempre, a contextos sócio-históricos, à relação do “ser” no “lugar”, aos estilos de relação entre sociedade e natureza. Em outras palavras, esses temas compreendem as múltiplas dimensões da Agroecologia: tecnológica, sociológica, metodológica e epistemológica (GOMES, 2005).

Na perspectiva desta última dimensão, é necessário admitir que, para alguns, seja muito difícil conceber que a Ciência não tem o monopólio sobre o conhecimento válido. Para eles, a abordagem sobre a construção do conhecimento agroecológico somente seria coerente a partir dos conhecimentos produzidos no ambiente acadêmico, ignorando que os conhecimentos produzidos em outros ambientes também são providos de validez. A compreensão deste obstáculo epistemológico, no sentido de Bachelard (1996), por si só é um enorme desafio para muitos acadêmicos. Afinal, um grande número deles foi formado a partir de correntes filosóficas que não admitem que outros conhecimentos e práticas ou corpus, práxis e cosmos (TOLEDO, 1996) tenham relevância ou contribuições para o estabelecimento de formas sustentáveis de relação entre sociedade e natureza, muito menos para novas práticas acadêmicas.

A revolução científica do século 16 foi a base para o modelo de racionalidade que veio a ser dominante e hegemônico na Ciência moderna, que até

[…] admite variedade interna mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de outras formas de conhecimento não científico (portanto irracionais) e que podem ser perturbadoras e intrusas. Como modelo global, esta racionalidade científica é também um modelo totalitário ao negar o caráter racional para todos os conhecimentos que não foram pautados por sua estrutura epistemológica e metodológica. (SANTOS, 2009).

Voltando à dimensão epistemológica (não no seu sentido restrito, que às vezes se confunde com a Filosofia da Ciência ou a abordagem do conhecimento científico exclusivamente), a Agroecologia reconhece, valoriza e estuda os chamados saberes populares, tradicionais ou locais como fontes de grandes contribuições à formulação de propostas, estratégias e programas que tentam contribuir para sociedades mais sustentáveis. Esse é o foco do Capítulo 3, que trata da relação da Agroecologia com os saberes locais, desenvolvidos por povos tradicionais, como suporte para o chamado desenvolvimento sustentável. É óbvio que a Agroecologia não adota esta estratégia sem críticas ou cuidados. Afinal, algumas sociedades desapareceram por terem adotado estilos equivocados de relacionamento com a natureza (também por isso, são fontes importantes de aprendizado).

Essa constatação remete a outras dimensões da Agroecologia, como a tecnológica, que não é a única, mas que é contemplada no Capítulo 4, cujo tema é a Transição Agroecológica e o redesenho de agroecossistemas em bases sustentáveis.

A propósito da adoção de estratégias equivocadas que podem provocar o colapso de sociedades ou civilizações, é oportuno referenciar a obra de Jared Diamond, citada no Capítulo 4. Sem cair na tentação de repetir a “cita da cita”, é relevante ressaltar que, entre as oito categorias de fenômenos que explicam colapsos em vários contextos, quase todas, senão todas, são recorrentes onde ocorrem os processos tecnológicos intensivos da agricultura dita moderna. Desflorestamento, destruição de habitats, problemas de solo e de recursos hídricos, sobre-exploração de recursos naturais (pesca e caça), introdução de espécies exóticas e aumento de impactos dos seres humanos sobre a natureza não são fatalidades históricas ou eventos aleatórios, que ocorrem de forma dispersa e que deixam algumas “cicatrizes” que teimam em não “curar”. Ao contrário, são o produto esperado e previsível da adoção de um estilo de ciência, de organização social e de relação entre sociedade e natureza que, na visão convencional, acaba por se transformar em uma espécie de “devenir determinístico”: as coisas são assim porque só podem ser assim. Para solucionar os problemas gerados por esse tipo de opção, segundo essa linha de raciocínio, as coisas só podem ser resolvidas usando as mesmas ferramentas que ajudaram a criar os problemas, ou seja, mais do mesmo. Entretanto, há muito, Albert Einstein já alertava que problemas não se resolvem com os instrumentais responsáveis por seu surgimento.

A inclusão dos capítulos que tratam do conceito de Transição Agroecológica e das possibilidades dos conhecimentos local e historicamente produzidos teve a intenção de mostrar, desde o início da Coleção Transição Agroecológica, que esse é um debate a ser aprofundado, que existe ainda muito a ser desvelado e desenvolvido, tanto na construção da base científica da Agroecologia como na sua expressão mais aplicada e pragmática. Isso não significa dizer que uma certa compartimentalização agroecológica seja aceita entre aqueles que se dedicam ao tema. Ao contrário, significa afirmar que Agroecologia é, sim, um conceito multidimensional, plural e que consegue não apenas superar barreiras disciplinares, mas também articular conhecimento científico e sabedoria para o redesenho de agroecossistemas em bases sustentáveis (tema do Capítulo 4) e cuja história, para alguns, ainda tem muito de ciência, prática e movimento (abordagem contemplada no Capítulo 1). A Agroecologia também aceita o desafio de consolidar esses conhecimentos em um processo de resistência e evolução (conforme trata o Capítulo 2), que reconhece, em práticas milenares, além de contribuições para o desenvolvimento sustentável, muitas novas hipóteses para a Ciência tal como é considerada e praticada em academias científicas e instituições de pesquisa e desenvolvimento.

Um exemplo de grande relevância sobre as possibilidades deste tipo de pesquisa é o Projeto Terra-Preta de Índio: Descobrindo o Passado e Olhando para o Futuro, que reúne as principais instituições de pesquisa da região Norte (várias Unidades da Embrapa – Amazônia Oriental, Acre, Rondônia e Amapá –, a Universidade do Estado do Amazonas – UEA –, a Universidade Federal do Amazonas – Ufam –, a Universidade Federal do Pará – UFPA –, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa – e o Museu Paraense Emílio Goeldi) e de outras regiões (Museu de Arqueologia e Etnologia – MAE/USP –, a Embrapa Solos, a Embrapa Florestas, o Serviço Geológico do Brasil – no Amazonas e no Rio de Janeiro – e o Centro de Energia Nuclear na Agricultura – CENA/USP), além de instituições da Colômbia, da Bolívia e da Holanda. O projeto combina uma estrutura interdisciplinar que relaciona as Ciências Naturais e Sociais com uma abordagem comparativa e trabalha em vários países que diferem em condições ambientais e aspectos sociais (MANAUS…, 2012).

A terra-preta é considerada um modelo a ser copiado no manejo dos solos tropicais. O manejo que as populações pré-colombianas fizeram tornaram os solos férteis e com elevados estoques de carbono. No momento, o projeto busca entender como foi formado o solo da terra-preta e busca a reprodução do modelo visando a (sic) formação de novas áreas com as mesmas características. Para pesquisadores da Embrapa, as terras-pretas são provavelmente oriundas da decomposição de animais e outros materiais orgânicos que existiram na região há centenas de anos. Ao ser carbonizado, esse material teria se unido e formado sítios de elevados teores de nutrientes, protegendo os solos da lixiviação, tão comum na região. (TUPINAMBÁ, 2007).

Voltando aos capítulos, a interdependência entre eles não para por aí. Qual é o significado de tudo isso se não for a contribuição para uma vida mais saudável, mais feliz e com mais qualidade? Se não a contribuição para sociedades menos assimétricas, mais fraternas e mais amorosas? Desde seus primórdios, nossa civilização teve sempre um grande desafio: o da sobrevivência. Não é possível sobreviver sem abrigo e sem alimento, mas isso não basta. Muitos outros elementos constituíram o imaginário do ser humano ao longo de sua evolução e de seu aprendizado. O Capítulo 5, que aborda as relações entre Agroecologia, mercados e sistemas agroalimentares, mostra como, ao longo do tempo, a comida passou de bem patrimonial da humanidade a bem coisificado, o que representou impactos sobre alimentação, saúde e cultura, em um processo contínuo de “desmonte” de referenciais construídos a duras penas há alguns milhares de anos. Processos de globalização hoje permitem ao consumidor ter à disposição quase qualquer tipo de produto em quase qualquer dia do ano. Isso, é claro, desde que tenha a moeda suficiente para poder pagar a conta. Mais óbvio ainda é o fato de que essas possibilidades estão muito longe de serem democraticamente distribuídas e acessíveis a muitas pessoas em muitos lugares do planeta.

Entretanto, o tema vai muito além destas obviedades, como muito bem aborda o autor do Capítulo 5, que situa a crise do sistema agroalimentar em quatro manifestações também interdependentes: crise ambiental, crise da democracia representativa, crise da Ciência e crise econômico-financeira. A análise também precisa o papel da Agroecologia no enfrentamento dessas crises civilizatórias (produtos não aleatórios, mas sim previsíveis e esperados, como já foi afirmado).

Se o cidadão individualmente pode pouco, de forma coletiva ainda tem possibilidades. Algumas formas se enquadram no âmbito do velho sistema do enfrentamento público, como se tornou quase rotina na chamada Zona do Euro, que, ao abrir mão de uma base produtiva solidamente construída ao longo da história, em um repente, se viu à mercê de mais uma crise, produto de uma economia volátil, baseada não mais na troca de mercadorias. Quem, em sã consciência, iria a um mercado comprar ativos da dívida de alguém? Outras formas mais modernas são as ações coletivas geradas individualmente por meio das mídias sociais. “Estudos recentes, utilizando dados públicos postados no Facebook, mostram que as ações individuais disseminam inesperada influência sobre estranhos ao se propagarem rápida e profundamente nas redes sociais” (SMITH, 2001). Este tipo de reação pode ser exemplificado pelo Movimento Slow Food, contraponto ao desaparecimento de tradições culinárias e que enfatiza a necessidade de valorizar a procedência, o sabor e a qualidade dos alimentos. Cabe lembrar que a valorização da cultura, do saber fazer, do comércio justo e solidário, dos circuitos curtos de consumo e comercialização, do manejo da agrobiodiversidade, entre outros, são temas incluídos na pauta agroecológica.

Outro ponto a destacar neste primeiro volume da Coleção Transição Agroecológica é a pluralidade da formação ou da trajetória de vida dos autores: ainda que com o predomínio de engenheiros-agrônomos, no grupo estão presentes acadêmicos clássicos, professores, pesquisadores e técnicos oriundos dos movimentos sociais e da extensão rural e que hoje trabalham em espaços acadêmicos, mas que não abriram mão de suas raízes. Este grupo de autores diverso configura uma práxis perfeitamente conectada com o meio real onde vivem seres humanos que adotam diferentes estratégias de relacionamento com a natureza.

Essa riqueza de histórias e de práticas é fundamental para uma ruptura, capaz de produzir, como sugere Santos (1995, p. 37),

[…] uma ciência prudente e um sentido comum esclarecido, dando lugar a outra forma de conhecimento e uma nova configuração para o saber, que, sendo prático, não deixa de ser esclarecido e que, sendo sábio, não deixa de ser democraticamente distribuído. Que permita destruir a hegemonia da ciência moderna sem perder as expectativas por ela geradas.

No mesmo sentido, afirmava Trias (1997) em editorial do Jornal El Mundo (da Espanha) em setembro daquele ano:

Se impõe, neste fim de milênio, um projeto ilustrado que resgate de seu falso pedestal a razão sacralizada […] pedestal que em outros mundos culturais ou históricos se achava situada a religião […]. A razão, por meio de seus mais poderosos agentes, como a ciência e a técnica, se converteu em oráculo a apelar em todas as questões que reclamam algum tipo de autoridade legítima (tradução nossa).

Um olhar sobre os capítulos

O Capítulo 1 faz um apanhado da história recente da agricultura brasileira e mostra os percursos de alguns grupos que, desde seu início, apontaram os descaminhos que poderiam resultar da aceitação acrítica e passiva de um modelo único para a agricultura do País: a vinculação a complexos agroindustriais antes e depois da produção, além de dependência de rotas tecnológicas sobre as quais não existe nem controle nem independência.

A narrativa contextualiza a evolução do pensamento agroecológico a partir de diferentes aportes, de pontos de vista tanto estratégico como tático e operacional. Talvez por isso mesmo, o capítulo trate dessa evolução em diferentes perspectivas (movimento social, prática e ciência). Aí não reside nenhum deslize em relação à história. Afinal, na construção dos caminhos da Agroecologia, se encontram diferentes movimentos, alguns apoiados pela Igreja, outros por órgãos classistas (como a Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil), além de representações de trabalhadores, estudantes e técnicos, acadêmicos, pesquisadores e intelectuais independentes. Esse caldo de cultura, por vezes, gerou embates contraditórios, como a discussão sobre os papéis do Estado e da sociedade tomados como se fossem antagônicos. Entretanto, é preciso reconhecer que isso também faz parte dessa história.

Além disso, é certo que essa história não se inscreve ou não se escreve apenas aqui no Brasil. Já há bastante tempo e de diferentes lugares surgiram contribuições de grande relevância que mostram que outros caminhos para a agricultura e sua relação com o ambiente eram possíveis. Como exemplos de contribuições relevantes podem ser citadas as propostas de Rudolf Steiner, filósofo austríaco defensor da agricultura biodinâmica na década de 1920; de Albert Howard, que teve larga experiência nas Índias Orientais, Índia e Inglaterra entre 1925 e 1930 e é considerado por muitos como o pai do movimento orgânico; dos japoneses Mokiti Okada (1935) e Masanobu Fukuoda (década de 1950), que propuseram a agricultura natural; e do australiano Bill Mollison (anos 1970), defensor da permacultura, que propõe novas formas de relacionamento do ser humano com a natureza para além da agricultura (CANUTO, 1998).

A contextualização histórica apresentada no Capítulo 1 mostra como um movimento disperso (às vezes passível de diferentes entendimentos, estratégias e propósitos) foi ganhando corpo e conteúdo. Muitas iniciativas contribuíram para isso, inclusive para a superação de “pré-conceitos”. Atualmente, ainda que persistam algumas divergências, há uma grande convergência em relação à causa agroecológica. Essa unicidade tem aumentado consideravelmente desde o surgimento da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia). Essa aproximação, patrocinada por essas organizações, tem muito a ver com um dos princípios da própria Agroecologia: a articulação dos saberes popularmente construídos com o conhecimento acadêmico.

No Capítulo 2, a análise sobre a construção do conhecimento agroecológico parte da constatação de que existe uma crise ambiental planetária provocada por uma racionalidade baseada no produtivismo focado em aspectos meramente econômicos. Os autores optaram por um percurso analítico que indica que a Agroecologia como campo do conhecimento é o caminho para a superação dessa crise.

Conforme eles apontam, essa é uma crise de raízes epistemológicas, campo que ainda carece de muita formação, propósito para o qual o capítulo pretende contribuir. Ainda que muitos autores tenham produzido trabalhos interessantes nos últimos anos e que grande parte dessa produção tenha sido da lavra de latino-americanos1, o tema tem permanecido solenemente ignorado na maioria dos espaços de formação, principalmente no âmbito das Ciências Agrárias. Parece que, nesse caso, a formação disciplinar reducionista tem desenvolvido muito mais competências para responder bem ao “como”, muitas vezes deixando de lado preocupações com “o que”, “porque”, “para que” e “para quem” (GOMES; MEDEIROS, 2009). A perspectiva epistemológica na produção do conhecimento agroecológico pretende contribuir para ir além das aparências, da falsa ilusão da busca do conhecimento objetivo e universal, da obtenção do conhecimento válido, neutro e verdadeiro. Além disso, objetiva desmitificar a existência de monopólio da Ciência sobre o conhecimento e mostrar que existem outras formas de conhecimento também válidas, ou seja, que a Ciência é apenas outra forma de construção social, determinada pelos contextos socio-históricos onde é praticada.

Além da perspectiva epistemológica, os autores transitam pelas perspectivas metodológica e pedagógica e evidenciam que a produção do conhecimento agroecológico, longe de uma pretensão totalizante, está inserida em um contexto complexo, em que as verdades de hoje podem não ser as de amanhã. Por isso, a produção do conhecimento carece de matriz transdisciplinar, em que a formação dos formadores e das novas competências deva ir muito além da singela explicação de “como as coisas funcionam”, pretensão dominante na Ciência convencional.

No Capítulo 3, as bases e os argumentos que os autores utilizam para sustentar a articulação e o diálogo da Agroecologia com os saberes e práticas tradicionais, como contribuição para “estilos” de desenvolvimento mais sustentáveis, estão em acordo com o que se apresenta nos demais capítulos: crise civilizatória, com reflexos ambientais planetários, também originados do percurso da Ciência ocidental transformada em cientificismo, que assume dogmaticamente que conhecimentos produzidos em outros ambientes são desprovidos de validez.

O resgate e a valorização da sabedoria dos povos tradicionais são necessários, embora, a partir do que Iturra (1993) denomina “epistemologia natural” (em oposição a uma visão em que episteme trata só do conhecimento científico), esses sejam processos complexos. Ainda segundo Iturra, os conhecimentos populares, tradicionais ou campesinos são resultados da acumulação direta: todo dia, o conhecimento é processado e reprocessado, mas também depende da memória, o que permite aprendizado no convívio com elementos da paisagem, que muda com o tempo. Além dessas formas, esses conhecimentos também são dependentes de uma reprodução em dois sentidos: do surgimento de novos membros do grupo e de seu aprendizado para manejar o modo de produção e reprodução que os caracteriza. Formas de solidariedade e laços de amizade e parentesco adquirem significado especial para a constituição e preservação desses grupos sociais.

Assim, todo o processo de produção desse tipo de conhecimento representa o que Norgaard (1995) denomina coevolução entre sistemas sociais e naturais, que é “recheado” por aquilo que Toledo (1996) denomina corpus (repertório de símbolos e percepções sobre a natureza), práxis (conjunto de operações práticas para apropriação da natureza) e cosmos (as diferentes visões de mundo que cada “tribo” expressa em cada contexto sócio-histórico).

Aí reside uma grande diferença entre a “Ciência tradicional”, que produz conhecimento para a sobrevivência, e a Ciência convencional, que, muitas vezes, resulta em fazer ciência para produzir mais ciência. Isso é o que leva à distinção entre o saber produzido na Ciência e a sabedoria e o conhecimento como produtos de processos históricos (GOMES, 1999).

Os povos tradicionais, em certa medida, praticam Agroecologia “por contingência”, ou seja, muitas de suas estratégias estão alinhadas e podem ser utilizadas como exemplos de relação harmônica entre sociedade e natureza. Aqui está uma grande confluência: a proposta da Agroecologia como enfoque científico e sua relação com o que povos tradicionais praticam em seus territórios. Alguns desafios, por exemplo, são a “fertilização cruzada” entre esses diferentes tipos de conhecimentos, de modo a estabelecer o enlace entre o papel dos povos tradicionais na preservação e evolução da agrobiodiversidade e novos usos para ela, que podem ser proporcionados por uma ciência mais aberta, que saiba lidar com a complexidade.

O Capítulo 4 aborda o conceito de Transição Agroecológica como contribuição para o redesenho de agroecossistemas em bases sustentáveis, tema que hoje ganha cada vez mais corpo em vários e importantes espaços (academia, políticas públicas, conferências internacionais, movimentos sociais, etc.). Porém, ainda longe de ganhar status de paradigma dominante, a Agroecologia atualmente enfrenta muito menos preconceitos e barreiras individuais e institucionais. O mês de agosto de 2012, em razão da concentração de vários acontecimentos de grande relevância, poderia passar para a história como uma espécie de “agosto agroecológico”.2

Partindo da premissa de que “o principal desafio da agricultura, além de ser produtiva e geradora de alimentos de elevada qualidade biológica, é ser também sustentável, independentemente das denominações assumidas ou dos qualificativos que vier a receber” (Capítulo 4), os autores estabelecem um rumo para o texto em que situam “transição” e “sustentabilidade” como processos complexos, produtos de intrincadas redes dependentes de relações sociais, econômicas, culturais e biofísicas, que são diferentes em cada lugar.

Essa opção elimina, desde logo, por um lado, a tentação por algumas simplificações que adotam uma abordagem de “receituário de boas práticas” e que apresentam apenas “mais do mesmo” e, por outro lado, algumas tentativas oportunistas do tipo “economia verde”. Já em 1999, François Dufour alertava para o fato de que é necessário que

[…] a agricultura tenha como centro de sua preocupação as dimensões social, territorial e ambiental, e não uma agricultura dual, em que os pobres se empanturrariam de uma alimentação de má qualidade, produzida por um punhado de agricultores ricos, e em que os ricos consumiriam uma alimentação de qualidade fornecida por lavradores pobres. (DUFOUR, 1999, p. 6 e 7).

Claro está que a necessidade de consolidar a transição para sistemas mais sustentáveis decorre e é produto da comprovada insustentabilidade vigente não só na agricultura como na própria sociedade. Portanto, a Agroecologia, como enfoque científico para a construção do processo de transição, vai muito além da produção de alimentos “limpos”, “verdes” e “saudáveis”. Como afirmado nesta Introdução, várias dimensões estão implicadas e devem constar daquilo que é o foco da Ciência Agroecológica.

Estudiosos e adeptos do tema têm debatido se o conceito de “transição” dá conta ou se é adequado para diferentes estilos de agricultura. Alguns entendem que o conceito tal qual formulado inicialmente por Gliessman (1990) seria mais adequado a lugares onde a “modernização” da agricultura foi ou é mais intensiva, o que implica a necessidade de aprofundar ou readequar a proposta para lugares onde a agricultura não recebeu aportes de insumos, como é o caso da agricultura da região amazônica ou de outras regiões do País. Para não causar confusão com “intensificação ecológica”, o conceito “modernização” aqui significa intensificação tecnológica convencional. Este livro pretende contribuir para esse debate; afinal, a Ciência Agroecológica não se constitui a partir de dogmas ou verdades autossuficientes. Ao contrário, como construção social, ela está em permanente processo de elaboração, sem, entretanto, assumir um relativismo que possa significar a perda do próprio rumo.

O Capítulo 5, intitulado “Agroecologia, mercados e sistemas agroalimentares: uma leitura a partir da soberania e segurança alimentar e nutricional”, começa com uma indagação que não representa uma questão de somenos importância: existe crise alimentar ou um sistema alimentar em crise? Eis uma incômoda questão, que afeta a vida das pessoas, mas que, cada vez mais em função de uma governança difusa, ineficiente e talvez descomprometida, as submete e as coloca à mercê de grandes jogos de interesse quando, na verdade, essa questão carece de ações concretas.

Trata-se de uma crise que afeta pessoas, regiões e países, mas que é sobejamente controlada, orientada e manipulada pela “mão invisível do mercado”, a seu favor, logicamente. Como dizia criticamente Laszlo (1997): inventem a coisa, logo descobriremos quem vai querê-la ou consumi-la. Se ninguém a quiser, então basta criar a “demanda”. Esse é o significado de comida que virou coisa, coisa que não se planta, não se cultiva e não se colhe e que, quando alguém quer vender, tem que ocupar um espaço pago em uma gôndola de uma grande superfície, sofisticada forma de extração de mais-valia engendrada pelo grande capital que tomou (ou tenta tomar) conta do que se chama complexo agroalimentar.

Grandes discursos sobre o tema, ainda que muito bem postos (como foi o de Jacques Diouf, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura em uma conferência na Universidade de Havana, em Cuba, em 2008), têm tido poucos resultados, além da retórica. Nem estados nacionais nem organismos mediadores têm conseguido enfrentar um processo cada vez mais marcado por interesses corporativos situados fora dos setores de produção e processamento de alimentos, como a agricultura e a indústria processadora e a própria distribuição.

Ao mesmo tempo em que houve uma “desnaturalização” do processo produtivo de alimentos, que implicou perda de protagonismo da natureza e de seus ciclos naturais e dos próprios seres humanos, houve a “naturalização” de situações que parecem não provocar reação de uma massa humana que vê a morte de milhares de pessoas, principalmente crianças, como se fosse apenas mais uma notícia do jornal noturno. Trata-se de verdadeira banalização de uma situação de calamidade. Esperamos que este primeiro título da Coleção Transição Agroecológica contribua com aqueles que lutam para transformar essa situação.

Finalmente, as Considerações finais apresentam uma síntese e uma reflexão sobre as discussões dos capítulos precedentes; e, além disso, pretende estimular o debate no tema Agroecologia e a Transição Agroecológica. A propósito, a construção do conhecimento para agricultura e sociedade mais sustentáveis será objeto dos próximos volumes desta Coleção.

Sobre o “agosto agroecológico”

Em 20 de agosto de 2012, a presidenta da República, Dilma Rousseff, por meio do Decreto nº 7.794 (BRASIL, 2012), instituiu a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), que tem como instrumento um plano nacional que contempla: crédito e financiamento, seguro agrícola e de renda, preços compensatórios e regulatórios, compras governamentais, medidas fiscais e tributárias, pesquisa e inovação científica e tecnológica e assistência técnica e extensão rural.

Em 8 de agosto de 2012, ocorreu o lançamento da Frente Parlamentar Mista pelo Desenvolvimento da Agroecologia e Produção Orgânica, que tem como princípios orientadores a soberania e segurança alimentar e nutricional, a participação social, o respeito aos saberes tradicionais, a superação do uso dos agrotóxicos, a proteção e o uso sustentável dos recursos naturais e a socialização do conhecimento agroecológico.

No mesmo mês, foi lançado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) o Plano Safra da Agricultura Familiar 2012/2013 (BRASIL, 2013), que tinha como slogan a frase “Alimentos, Renda e Sustentabilidade”, incluindo a “Rota da Sustentabilidade”: todos os contratos de assistência técnica e extensão rural (Ater) exigirão melhoria da gestão ambiental e redução do uso de agrotóxicos; 340 mil famílias serão contempladas com recursos para práticas sustentáveis, incluindo sistemas agroecológicos, orgânicos ou agroflorestais, necessariamente com apoio da assistência técnica.

Por sua vez, o Encontro Unitário dos Trabalhadores e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, realizado em Brasília de 20 a 22 de agosto daquele ano (ENCONTRO…, 2012), em seu documento final, apontou as seguintes prioridades: reforma agrária; soberania territorial; soberania alimentar; Agroecologia; agricultura familiar; relações igualitárias; soberania energética; educação; democratização dos meios de comunicação e respeito ao direito das populações.

No âmbito interno à Embrapa, o ato do diretor executivo de Pesquisa e Desenvolvimento, via Resolução Normativa, constituiu o comitê gestor do Portfólio de Projetos em Sistemas de Produção de Base Ecológica, o que assegurou a definitiva institucionalização do tema na Empresa.

Referências

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