Capítulo 5
Julian Perez-Cassarino
Abordar a questão alimentar exige articular inúmeros elementos e processos do dia a dia dos seres humanos. Na medida em que se constitui em função básica para a manutenção da vida, tal como respirar e beber, o ato de alimentar-se compõe o cotidiano das sociedades humanas. Seu trato é diário; permeia diálogos, encontros e conflitos, prazeres e carências, coerência e ambiguidade, atitude e passividade, autonomia e submissão, preocupações e satisfações.
Esse ato, que envolve situações corriqueiras de desejar, escolher, preparar e partilhar os alimentos, também revela uma estrutura de produção, beneficiamento e distribuição permeada por interesses corporativos e apropriação de capital, que, ao mesmo tempo em que possibilita uma produção em massa de alimentos, impossibilita a milhões o seu acesso.
Esse caráter cotidiano e estrutural talvez possa explicar a forma como, há muitos anos, a comunidade global vem convivendo com diferenças abismais entre seres humanos em termos de acesso aos alimentos. Nas últimas décadas, pelo menos uma a cada cinco ou seis pessoas (dependendo do período) vive em situação de carência ou ausência de alimentos no planeta, desde que esses números começaram a ser levantados e divulgados (FAO, 2010), constatação que é incômoda e difícil de explicar.
Essa realidade não é o resultado de uma ação natural do ser humano ou de sua decisão individual de determinar ou não as condições de acesso aos recursos mínimos para sua sobrevivência (alimento). Por trás dessa realidade, há um intrincado jogo de interesses corporativos e de relações de poder entre nações e entre empresas privadas e o Estado. Não por acaso, os fóruns internacionais de debate em torno das questões da fome têm sido cada vez mais esvaziados (ETC GROUP, 2008; MALUF, 2009), transferindo para o âmbito dos espaços comerciais – notadamente a Organização Mundial do Comércio (OMC) – as decisões acerca da produção e distribuição dos alimentos.
De fato, a questão alimentar tem relação direta com os processos de desenvolvimento de uma nação, de um lado, porque os seres humanos precisam ser bem alimentados para sustentar sua atividade produtiva e seu convívio saudável em sociedade e, de outro lado, conforme afirma Maluf (2009, p. 24), porque “os processos de desenvolvimento econômico ligam-se à questão alimentar por motivos de ordem ética, econômica e política, e esta questão influi de forma decisiva no padrão de equidade social de uma sociedade”.
No entanto, pouco empenho tem sido observado por parte dos Estados, notadamente dos chamados “países desenvolvidos”, para apresentarem soluções rápidas e eficientes à questão da desnutrição. Apesar de se observarem melhoras em muitos indicadores sociais nas últimas décadas, tais como escolaridade, mortalidade infantil e expectativa de vida, o fato é que “[…] seguimos projetando para um amanhã sempre prometido; conquistas que, há muito, poderiam ter sido atingidas” (MALUF, 2009, p. 11).
No clássico Geografia da fome, Josué de Castro alertava para a observação da fome como um fenômeno global e não somente localizado em algumas realidades específicas ou determinadas, fadadas a essa situação pela sua precariedade de condições, falta de recursos ou de iniciativa própria para obter o alimento. Longe disso, o autor aponta que a fome pressupõe determinações econômicas e sociais, que aproximam realidades e universalizam a questão:
Na realidade, a fome coletiva é um fenômeno social bem mais generalizado. É um fenômeno geograficamente universal, não havendo nenhum continente que escape a sua ação nefasta. Toda a terra dos homens tem sido também até hoje terra da fome. (CASTRO, 1984, p. 56).
É preciso considerar a degradação da economia dos países subdesenvolvidos como uma poluição do seu meio humano, causada pelos abusos econômicos das zonas de domínio da economia mundial; a fome, a miséria, os altos índices de frequência de enfermidades evitáveis com um mínimo de higiene, a curta duração média da vida, tudo isto é produto da ação destruidora da exploração do mundo segundo o modelo da economia de domínio. (CASTRO, 2004, p. 96).
Essa importante temática ganhou novo impulso nos últimos anos em virtude das significativas altas nos preços dos alimentos, o que vem agravando os quadros de fome e de miséria no mundo. Nos anos 2007 e 2008, inúmeras manifestações foram observadas em vários países como resultado da elevação dos preços dos alimentos. (AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS, 2008; HOLT-GIMENEZ; PATEL, 2010; PEREZ-CASSARINO et al., 2009).
No entanto, faz-se necessário analisar quais são os significados de tais crises e propor uma leitura crítica de suas manifestações. Em primeiro lugar, porque a situação de fome e carência de alimentos é crônica na sociedade global, para o que se compreende que falar em crise(s) alimentar(es) neste período tem significado, invariavelmente, o agravamento de um quadro, que já pode ser considerado como de permanente crise, se assim se entender o fato de haver historicamente, em média, quase um quinto da população humana em situação de fome. (FAO, 2010).
Enfim, as revoltas causadas pela elevação dos preços dos alimentos nos anos 2007 e 2008 e, com menor intensidade, porém igualmente marcantes, em 2010 não podem ser consideradas como manifestações de “crises alimentares”, mas sim, como sintomas de um sistema agroalimentar em crise (HOLT-GIMÉNEZ; PATEL, 2010; MALUF, 2008).
Em segundo lugar, porque parte-se do pressuposto de que essas crises alimentares estão emolduradas por um quadro geral de crise civilizatória que se vive na atualidade. Não há como fazer uma leitura das crises alimentares nos dias de hoje sem se estabelecer as necessárias conexões e articulações com outros processos em crise, dados por uma inter-relação complexa e dinâmica entre causas e efeitos das mais diversas ordens.
Várias poderiam ser as abordagens sobre os processos em crise na atualidade. No entanto, com a finalidade de facilitar a compreensão, buscou-se explicitar, neste Capítulo, quatro principais expressões dessa crise civilizatória, as quais se compreende terem relação mais estreita com a constituição de um sistema agroalimentar em crise e de suas manifestações. Nesse sentido, quatro grandes processos de crise são revelados a seguir: i) crise ambiental; ii) crise da democracia representativa; iii) crise da Ciência; e iv) crise econômico-financeira.
A primeira relação a ser estabelecida é a das crises alimentares com a crise ambiental global. Nos últimos anos, esse tema tem ganhado relevância em função dos debates em torno das mudanças climáticas e do aquecimento global. No entanto, há mais de três décadas, têm sido cada vez mais engrossadas as fileiras dos críticos aos impactos ambientais gerados pelo modelo de agricultura proposto pela Revolução Verde como caminho para o combate à fome.
Esses impactos já foram descritos e amplamente documentados por diversos autores e advêm do intenso processo de industrialização e tecnificação da agricultura. A expansão de grandes extensões de monoculturas – baseadas em sementes híbridas (depois transgênicas), uso de insumos químicos e pesada mecanização – levou a efeitos nefastos sobre os ecossistemas locais. Dentre eles, destacam-se a contaminação da água e dos solos; a erosão, compactação e salinização de solos; as emissões de poluentes e gases de efeito estufa (de 15% a 20% das emissões totais do planeta correspondem à agricultura); e o desmatamento e a crescente perda de biodiversidade e agrobiodiversidade (ALTIERI, 1999; GLIESSMAN, 2000; GUZMÁN et al., 2000; PORTO-GONÇALVES, 2004; RIECHMANN, 2003).
Aos problemas enfrentados na agricultura agregam-se os impactos ambientais gerados pela intensa circulação de alimentos dada pela liberalização dos mercados e elevação das importações/exportações em detrimento da produção voltada para o autoconsumo das nações. A concentração e centralização das unidades de beneficiamento e processamento dos alimentos e de distribuição também acarretam grandes deslocamentos. Estudos indicam que, por exemplo, nos Estados Unidos, o alimento percorre 2.100 km em média desde sua origem até chegar ao consumidor final (DELGADO, 2010).
A ineficiência dos sistemas de produção e processamento e os longos deslocamentos também geram importantes desequilíbrios energéticos dentro do sistema agroalimentar. Estima-se que os alimentos disponíveis para a população americana, por exemplo, representem 20% da biomassa utilizada no sistema para sua produção, processamento e transporte. Ainda não se levam em consideração, nessa estimativa, os desperdícios e as perdas de alimentos no processo. (DELGADO, 2010).
A segunda relação a ser estabelecida é com a crise e o permanente questionamento dos modelos de democracia e as instituições e os governos que as representam e constituem. Entende-se aqui essa crise não como o esgotamento do papel do Estado (tal qual proposto pelas leituras neoliberais), mas sim, como sua pouca permeabilidade e adequação à dinâmica e complexidade das sociedades.
Nas últimas décadas, a hegemonia do modelo de democracia representativa fez com que se fechassem os olhos a outras possibilidades de construção do espaço democrático, o que Boaventura de Sousa Santos define como “demodiversidade”, ou seja, a diversidade de formas alternativas de democracia que, em luta entre si, contribuíram para a força do próprio processo democrático (SANTOS, 2007).
Vive-se um momento de sociedades com uma democracia de “baixa intensidade”, dada pela retirada da função primordial do Estado como promotor de redistribuição de riquezas e redutor de desigualdades. Uma democracia em que os grupos dominantes têm poder de decisão sobre os setores mais fracos da população, o que pressupõe um processo de exclusão aceito pela forma democrática hegemônica, conforme assevera Santos (2007, p. 89):
O importante agora é ver como o fato de se passar muito facilmente do sistema de desigualdade ao sistema de exclusão está produzindo uma situação nova, que é essa de haver brutais desigualdades sociais que são invisíveis, que estão aceitas, que estão naturalizadas, ainda que se mantenha a ideia democrática, o Estado democrático.
Essa democracia de “baixa intensidade” está dada pela construção de um marco legal ou por um jogo de forças políticas desigual, em que os interesses das grandes corporações multinacionais prevalecem sobre as legislações nacionais e locais. Da mesma forma, a primazia do Direito e da Justiça como forma de garantia do cumprimento de contratos econômicos se sobrepõe à garantia dos direitos sociais e políticos da população. (SANTOS, 2007).
Esse predomínio das forças de mercado sobre os valores humanos termina por gerar uma crise de representatividade dada pelo desinteresse dos cidadãos de participarem da cena política. A ausência de mecanismos e formatos políticos que articulem representação dos e prestação de contas para os cidadãos gera descrença e, consequentemente, desmobilização social. Enfim, a cidadania está aprisionada à condição única de participar ou não desse “jogo”, mas não tem a condição de debater seu funcionamento. Trata-se, conforme afirma Santos (2007, p. 92), de uma “cidadania bloqueada, na medida em que a muita gente – que é a característica do sistema democrático representativo – não se garantem as condições de participação, ou seja, uma cidadania que se baseia na ideia de participação mas não garante suas condições materiais”.
Nesse sentido, tais formatos democráticos hegemônicos tornam-se meios eficazes e apropriados para a expansão de um modelo de organização do sistema agroalimentar baseado na concentração corporativa, no predomínio do capital sobre as necessidades humanas e na difusão da ideia do livre mercado como forma de regular as relações humanas, entre elas a produção e distribuição dos alimentos. A influência das grandes corporações sobre governos locais, a fim de atender a seus interesses de expansão, se sobrepõe à garantia do alimento como direito à população, o que impõe uma nova forma de “fascismo alimentar”, na qual as grandes corporações se constituem no que Ploeg (2008) denomina impérios alimentares.
A terceira relação a ser estabelecida se dá com a crise da Ciência e da produção do conhecimento. Predominam, na Ciência, abordagens de cunho cartesiano, reducionistas e baseadas na fragmentação do saber, insuficientes para compreender a realidade das sociedades humanas e, mais ainda, para lhe propor soluções. Alia-se a isso o caráter exclusivista do saber acadêmico como o único válido e validado, que se autointitula como única forma de encontrar respostas para os dilemas da sociedade. Essa questão é evidenciada pelo discurso, uníssono e hegemônico no meio acadêmico, da necessidade de mais tecnologia para contornar os problemas gerados pela própria tecnologia (ETC GROUP, 2008). Tal concepção possui relação estreita com a forma como se compreende e intervém no ambiente, conforme afirma Leff (2006, p. 49-50, tradução nossa):
O conhecimento, ao fragmentar-se analiticamente para penetrar nos entes, separa o que está articulado organicamente na ordem do real; sem saber, sem intenção expressa, a racionalidade científica gera uma sinergia negativa, um círculo vicioso de degradação ambiental que o conhecimento já não compreende nem contém.
O saber científico expropria outras formas de gerar e organizar o conhecimento e impõe a sua positividade como estratégia de poder, à qual corresponde uma forma de apropriação da natureza que subordina os valores humanos e ambientais aos interesses econômicos e instrumentais (LEFF, 2006; PLOEG, 2008; PORTO-GONÇALVES, 2006). É o que Boaventura de Sousa Santos define como a monocultura do saber e do rigor, ou seja, a compreensão de que os demais saberes não têm valor perante o rigor do conhecimento científico. Todas as formas de produção do conhecimento alternativas a essa não são críveis; portanto, são invisíveis, gerando uma espécie de “epistemicídio”, ou seja, a morte de conhecimentos alternativos (SANTOS, 2007).
Nessa perspectiva, faz-se necessário propor o diálogo entre diferentes formas de produzir e organizar o conhecimento e os diversos saberes construídos em paralelo e partir de diferentes perspectivas, que podem contribuir, de forma mais integral, à compreensão da realidade social, econômica e ambiental. Conforme assevera Leff (2006, p. 51 e 52, tradução nossa) ao propor a abordagem do saber ambiental: “[…] este encontro de saberes implica processos de hibridação cultural onde se revalorizam os conhecimentos indígenas e os saberes populares produzidos por diferentes culturas em sua coevolução com a natureza”.
A essa imposição da Ciência como forma única de se gerar conhecimento corresponde, no caso da organização do sistema agroalimentar, a eliminação de milhares de saberes e conhecimentos associados às práticas de produção agrícola e pecuária, enfim, de manejo dos agroecossistemas, de adaptação de variedades agrícolas e raças animais, bem como de processamento de alimentos. Tais formas, desenvolvidas milenarmente por comunidades locais e povos tradicionais, em geral encontram grande ressonância com o ambiente local, dada pela própria necessidade de reprodução social desses grupos no e pelo meio em que se encontram.
Tão ou mais importante do que a perda de uma variedade local de milho, feijão ou arroz desenvolvida e preservada por alguma comunidade local, por exemplo, é a perda do conhecimento associado a ela. A cada variedade adaptada e a cada forma de manejo desenvolvida corresponde um saber acumulado, que, nos dias de hoje, torna-se importante ferramenta para o desenvolvimento de sistemas mais sustentáveis de produção e consumo, mas que, no entanto, são saberes excluídos e subordinados a uma lógica única de produção do conhecimento (PORTO-GONÇALVES, 2006).
Por fim, a quarta relação que se entende como importante de ser estabelecida é a que se dá entre o sistema agroalimentar em crise e a crise econômico-financeira. As fronteiras cada vez mais apagadas entre Estado e capital e Estado e megacorporações produzem um cenário onde as decisões econômicas não passam pela busca do bem-estar comum, mas sim pelo atendimento às demandas de expansão e realização de lucros dos grandes grupos corporativos.
Diante disso, a influência e a presença cada vez mais constante e determinante das corporações nas decisões dos Estados conduzem a uma nova maneira de organizar e estruturar as funções estatais, tais como saúde pública, segurança e educação. Transfere-se a responsabilidade pela prestação desses serviços para agentes mercantis, que impõem seus ritmos e suas formas de planejamento e organização determinados pela necessidade de expansão corporativa e realização de lucros para seus acionistas (PLOEG, 2008).
A financeirização das atividades produtivas, dada pela possibilidade de hipoteca de bens e emissão de títulos de dívidas, que, por sua vez, não são exigíveis, possibilita o perfeito atendimento das necessidades de crescimento desmedido das empresas. Intensos processos de fusão, incorporação e consequente concentração são observados, uma vez que deixa de haver restrições materiais para o aumento da riqueza (DELGADO, 2010; ETC GROUP, 2008; PLOEG, 2008). Nesse sentido,
[…] a futura lucratividade e o futuro valor dos acionistas tornam-se estratégicos para as operações atuais e, assim, a lógica e a justificação de uma dada atividade já não residem nessa atividade em si (e no lugar e época associados a ela), mas estão, ao invés disso, ligadas a e, por conseguinte, dependentes de sua (suposta) contribuição para a lucratividade e expansão do Império. (PLOEG, 2008, p. 276).
Há uma ligação fortemente presente entre esse processo de mercantilização do Estado e a crise das formas democráticas abordada anteriormente. O distanciamento entre o Estado e a sociedade abre espaço para a presença corporativa privada, o que contribui para que a corrupção e o tráfico de influência passem a ser elementos corriqueiros da ação política estatal (PLOEG, 2008; SANTOS, 2007). Novas e intrincadas redes e novas formas de gerir o poder e organizar a atividade econômica se estabelecem, conforme descreve Ploeg (2008, p. 276, 277):
Essa sobreposição do Império [grandes corporações] como princípio orientador implica que o Mercado e o Estado deixem de ser complementares um em relação ao outro, mesmo que parcialmente. Nos Impérios, e através deles, o Estado e o Mercado estão cada vez mais alinhados e fundidos […] o Império não é governado simplesmente por mercados e pela suposta ‘mão invisível’, mas pelo oposto, pois ele é, até certo ponto, capaz de governar os mercados que controla.
Particularmente no âmbito do sistema agroalimentar, essa lógica se reproduz a passos largos e observa-se um constante processo de concentração corporativa (nas mãos de algumas poucas empresas) e redução do controle público sobre as mais diferentes etapas do processo alimentar (ALTIERI; NICHOLS, 2010; DELGADO, 2010; ETC GROUP, 2008; HOLT-GIMÉNEZ; PATEL, 2010; PLOEG, 2008; SEVILLA; SOLER, 2010).
Dessa forma, a produção e o abastecimento alimentar estão cada vez mais subordinados às variações de mercado. A atual crise financeira mundial, deflagrada no ano de 2008, acarretou importantes agravamentos das manifestações da crise alimentar, pois restringiu o crédito para a produção. Ao mesmo tempo, mediante a inversão no mercado de matérias-primas (o que fortaleceu processos inflacionários para os alimentos), os ganhos das grandes corporações se multiplicaram ao apostarem no jogo financeiro e ao exercerem sua influência sobre os governos para obterem ressarcimentos de investimentos frustrados. Em contrapartida, milhões de famílias agricultoras, assim como famílias urbanas consumidoras, ficaram à mercê da volatilidade do mercado. (AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS, 2008; ALTIERI; NICHOLS, 2010; HOLT-GIMÉNEZ; PATEL, 2010; MALUF, 2008).
Daí porque, a leitura do que se compreende no momento como crise alimentar deva ser feita através de várias lentes e fundamentalmente compreendida no sentido de analisarem as recentes manifestações em função das altas de preços dos alimentos básicos como sinais de um sistema em crise. Se a crise não for analisada por esse ângulo e desconsiderando a complexidade da questão, termina-se por reduzir o debate, apontando causas superficiais para explicar um momento esporádico, para o qual se exigem soluções pontuais e meros “ajustes” no sistema em funcionamento, tal qual se tem observado no tratamento dos episódios dos anos de 2008 e 2010.
O debate que emerge no momento está voltado para a necessidade de discutir as razões estruturais ou as causas originárias da questão, que se encontram relacionadas com a forma como vem sendo estruturando o sistema agroalimentar nas últimas décadas (DELGADO, 2010; HOLT-GIMÉNEZ; PATEL, 2010; MALUF, 2008; PEREZ-CASSARINO et al., 2009; PLOEG, 2008). Tal processo é resultado e causador dos aspectos acima abordados, tais crises são geradas e retroalimentam um sistema agroalimentar concentrador, excludente e ambientalmente devastador.
A crítica à própria abordagem superficial das causas dessas crises alimentares tem levado a um aprofundamento e enriquecimento do debate e tem aproximado do tema pensadores dos mais diversos campos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil. A primazia do debate em torno das questões ambientais e as frequentes crises econômico-financeiras pareciam ter alijado do centro de discussão as questões essenciais da fome e da alimentação. Quando muito, a abordagem da questão alimentar se dava em torno do debate sobre a qualidade dos alimentos, os hábitos alimentares e os impactos à saúde humana, temas tão relevantes quanto os demais, mas que só se explicam quando em relação com os outros aspectos relativos à questão alimentar.
Tendo em vista o exposto, se buscará, na seção a seguir, debater as questões que levaram à estruturação desse sistema agroalimentar em crise, o qual se constitui e se expande, em função das políticas e decisões estratégicas tomadas pelos ou impostas aos Estados, sustentadas em relações de poder que configuram importantes desigualdades sociais e econômicas entre determinados grupos sociais e nações.
Dentre as diferentes dimensões a serem abordadas na discussão das crises alimentares, torna-se de fundamental importância resgatar aspectos referentes à estruturação do sistema agroalimentar mundial. As decisões políticas e os modelos de desenvolvimento adotados por estados nacionais e por organismos internacionais passam a configurar as formas de organização dos diferentes segmentos da cadeia agroalimentar (insumos, produção, processamento, distribuição e comercialização) e a definir mecanismos de funcionamento que fortalecem alguns e debilitam outros setores da cena produtiva.
Por sistema agroalimentar pode-se entender o conjunto de atividades que se integram visando ao cumprimento da função da alimentação humana. A forma mais adequada para a compreensão dos sistemas agroalimentares é entendê-los de maneira articulada, observando as interconexões entre os diferentes setores que os estruturam. Nesse sentido, não é possível isolar ou desagregar uma etapa da outra para compreender como se dá o processo alimentar; é necessário observar as inter-relações que se dão desde a etapa básica da produção agrícola ou pecuária até a venda e distribuição dos produtos. (SOLER, 2009).
Uma característica diferencial e determinante dos sistemas agroalimentares é a sua relação com as dinâmicas naturais e sua dependência dos ciclos biológicos, ou seja, há um elemento de permanente “instabilidade” no processo, que tem a ver com a reduzida capacidade de controlar as condições ambientais, que são determinantes para se obter os benefícios da produção alimentar (DELGADO, 2010; SOLER, 2009). Nesse sentido, as sociedades humanas, historicamente, foram desenvolvendo estratégias de “convívio” com essas incertezas, dadas por um processo de coevolução entre sociedade e natureza. Tal processo (baseado na observação constante e num processo permanente de experimentação) se concretiza em uma enorme diversidade de espécies vegetais e animais domesticadas, em formas de manejo dos recursos naturais disponíveis, em técnicas de cultivo, em desenvolvimento de ferramentas e maquinários e em seleção, conservação e reprodução de sementes. Todas essas práticas traduzem formas adaptadas de interagir com as condições naturais em que essas sociedades se encontram inseridas (PORTO-GONÇALVES, 2006; SOLER, 2009).
A essa enorme gama de práticas, técnicas, produtos e instrumentos corresponde uma diversidade igualmente importante de conhecimentos e saberes gerados a partir dessa interação contínua. No âmbito da questão alimentar, somam-se a essas práticas agrícolas inúmeras formas de preparo e manipulação dos alimentos, carregadas não só de uma importante diversidade de saberes, mas também de estruturas simbólicas e representações das relações dos seres humanos entre si e deles com a natureza. Assim, o processo alimentar caracteriza-se como um dos elementos estruturantes da cultura de um agrupamento humano, no qual diariamente se constroem formas de convívio humano, com natureza e com a própria espiritualidade (PORTO-GONÇALVES, 2006; SOLER, 2009; VALENTE, 2002).
No entanto, a intensificação dos processos de industrialização, notadamente no Pós-Guerra, representou um importante momento de reordenamento das estruturas produtivas, de processamento e abastecimento de alimentos. Até antes das Grandes Guerras, a função alimentar se encontrava muito vinculada à agricultura e submetida à determinação das condições naturais dadas em cada realidade. Assim, “[…] os alimentos que as pessoas compravam relacionavam-se diretamente com as plantas e os animais: batatas, pães, carnes, produtos lácteos, frutas e verduras. A agricultura atrelava-se intimamente ao clima e a outras condições naturais” (FRIEDMANN, 2000, p. 4). Os processos de transformação eram escassos, os produtos prioritariamente circulavam em âmbito local, e já havia comércio internacional, porém em menor intensidade (FRIEDMANN, 2000; SOLER, 2009).
Inicialmente, a expansão da atividade industrial e sua transferência para a produção agrícola e pecuária significaram uma importante quebra na lógica de organização da agricultura e impuseram uma dinâmica de subordinação dos ciclos naturais, vistos agora como limites a serem superados para viabilizar o estabelecimento de uma racionalidade baseada na expansão e acumulação de capital (DELGADO, 2010; SOLER, 2009). A essa importante e estratégica mudança no âmbito da agricultura (em que a lógica industrial acarretou a introdução de insumos externos industrializados, a privatização das sementes e o intenso processo de mecanização) somam-se o desenvolvimento e a expansão da indústria de transformação alimentar e a ampliação do comércio internacional de alimentos, conforme descreve Soler (2009, p. 4, tradução nossa):
O desenvolvimento da indústria de transformação alimentar e das indústrias de insumos agroindustriais, unido ao crescente comércio internacional alimentar, transformam profundamente a função alimentar, que se torna muito mais complexa e, portanto, resultado de múltiplas inter-relações entre diferentes agentes socioeconômicos. É essa realidade de complexas relações dinâmicas subjacentes à produção, distribuição e consumo da alimentação e das bebidas industrializadas a questão central do conceito de sistema agroalimentar.
Assim, o que se desenha, a partir da intensificação desse processo de industrialização, é a estruturação de um sistema agroalimentar baseado na dependência da indústria e de seus processos produtivos. A produção de alimentos fica cada vez mais atrelada e dependente das indústrias de insumos químicos, de sementes e de maquinário na agricultura, bem como de aditivos e processamento alimentar (SOLER, 2009). De fato, a produção, o beneficiamento e a distribuição dos alimentos têm experimentado, nos últimos 40 anos, um intenso processo de integração à lógica de organização industrial de funcionamento de suas diversas etapas, cada vez mais voltado para o âmbito da financeirização de suas atividades, o que distancia o processo de sua vinculação mais direta com a agricultura e seu entorno (DELGADO, 2010).
Inicialmente, a estruturação de um sistema agroalimentar de caráter industrial foi o formato pensado para reestruturar a produção e o abastecimento de alimentos dos países europeus no Pós-Guerra. O foco esteve centrado em ampliar, de forma dinâmica e acelerada, a produção de alimentos, a fim de recompor sistemas de produção e aplacar situações de carência alimentar. Não obstante a necessidade de se obter alimentos e com os caminhos abertos nessa conjuntura para uma possível liberalização dos mercados, a opção tomada pelos países centrais foi de aplicar, cada um ao seu modo, políticas de proteção às importações excessivas, bem como uma forte regulação do mercado, a fim de proteger suas economias e garantir o autoabastecimento (FRIEDMANN, 2000).
De fato, alguns aspectos cumpriram importante papel nesse processo. Cada vez mais, o modelo de consumo alimentar passou a se basear na elevação dos níveis de consumo de carne, seguindo os padrões estadunidenses e europeus, em que a constituição de toda a cadeia alimentar estava alicerçada na produção de alimento para os animais e nas inúmeras formas de sua industrialização. Acrescem-se a isso o forte desenvolvimento tecnológico e a “quimicalização” dos alimentos (com a utilização de conservantes, corantes e espessantes de base sintética), o que os tornou praticamente bens de consumo durável e fortaleceu a presença das grandes indústrias alimentares nesse mercado (FRIEDMANN, 2000).
Da mesma forma, as técnicas de conservação (como a desidratação e o congelamento) e de embalagem levaram a um “processo de substituição” dos produtos agropecuários por produtos industrializados (ou seja, “alimentos fabricados”), ao qual correspondeu um “processo de apropriação” industrial na agricultura (SOLER, 2009). Esse significativo aumento no número de produtos congelados e pré-preparados exigiu estruturas de refrigeração e armazenamento que favoreceram a presença das grandes redes varejistas na comercialização desses alimentos (FRIEDMANN, 2000).
No âmbito da agricultura, as mudanças corresponderam à evolução dos padrões industriais de produção dos alimentos. A intensificação da industrialização demandava cada vez mais produtos em maior escala e mais homogêneos, da mesma forma se dava com as necessidades crescentes de produtos agrícolas para alimentação animal. Sistemas tradicionais de rotação e consorciamento de culturas e com animais foram sendo substituídos por monoculturas intensivas, de menor estabilidade ecológica, portanto demandadoras de maiores volumes de insumos externos. A diversidade foi substituída pela homogeneidade. A mão de obra foi se tornando escassa, os pacotes tecnológicos aliaram cada vez mais sementes híbridas ao uso de insumos químicos e ao intenso processo de mecanização, favorecendo o estabelecimento das grandes produções em detrimento dos produtores de menor porte (FRIEDMANN, 2000; HOLT-GIMENEZ; PATEL, 2010; SOLER, 2009).
Tais aspectos determinaram um esgotamento do regime alimentar de forte intervenção estatal, uma vez que esse já havia dado as condições para o estabelecimento da expressiva presença corporativa dentro do sistema agroalimentar. Abriram-se, então, as portas para o fortalecimento das políticas de liberalização no âmbito do comércio mundial de alimentos voltadas ao fortalecimento e à expansão das corporações alimentares, já bastante tonificadas pelo modelo de produção fordista de alimentos (FRIEDMANN, 2000; HOLT-GIMENEZ; PATEL, 2010; PLOEG, 2008). De acordo com Maluf (2009, p. 42), “nesse mesmo contexto, as corporações transnacionais suplantaram as estruturas reguladoras nacionais sob as quais nasceram, tornando-se os principais agentes a tentar estabelecer uma regulação global privada das condições agroalimentares”. Assim,
[…] as especificações e normas sobre produtos e processos agroalimentares experimentam um processo de privatização que supõe o deslocamento de sua elaboração e implementação para as grandes organizações empresariais, que as converteram em um mecanismo a mais para reestruturar, gerir e controlar o sistema agroalimentar globalizado. […] Em definitivo, as normas decidem quem podem ser os provedores, onde se localizam e quais são suas condições, permitindo às grandes corporações deslocar custos e riscos para outros agentes, áreas e territórios. (DELGADO, 2010, p. 39, tradução nossa).
Observou-se ainda, nesse período, uma tendência de mercado voltada aos produtos gourmet dada por uma revalorização de produtos artesanais tradicionais, com garantia de origem, e de produtos exóticos, voltados ao atendimento de uma demanda de uma classe alta emergente em tempos de neoliberalismo. Tal possibilidade significou a emergência dos chamados mercados de nicho, voltados a produtos específicos, em geral elitizados e de alto valor agregado (FRIEDMANN, 2000).
A soma desses fatores (fortalecimento das culturas de exportação, ausência de regulação do Estado, aumento massivo das importações e desenvolvimento de mercados para produtos exóticos) levou a um intenso processo de reestruturação da base produtiva dos países em desenvolvimento. Invariavelmente, essa mudança significou um comprometimento ou total desmantelamento dos sistemas de produção voltados para o abastecimento interno, em função do atendimento às demandas externas, seja pela ampliação das áreas de cultivos de exportação, seja pela reorientação produtiva voltada aos mercados de nicho (frutas e verduras exóticas, flores, etc.). Da mesma forma, a entrada massiva de produtos importados (oriundos dos países desenvolvidos, a baixos custos), possibilitada pelas políticas de subsídios, desestruturou os sistemas locais de produção (DELGADO, 2010, HOLT-GIMENEZ; PATEL, 2010).
Nesse quadro, deslocou-se o papel central do Estado (regular as políticas de produção e abastecimento alimentar) para o jogo do livre mercado, e a presença das grandes corporações passou a ser o principal fator regulador da nova organização do sistema agroalimentar mundial. Tais ajustes representaram importantes comprometimentos da capacidade de abastecimento dos países e levaram a um processo de desestruturação dos sistemas de produção locais, em que, cada vez mais, pequenos produtores foram sendo empurrados em massa a abandonar suas áreas para consolidar os contingentes de mão de obra para as indústrias no meio urbano. Não é mera coincidência o fato de que se vive, na atualidade, um contrassenso: as mais graves situações de fome e carência alimentar localizam-se em zonas rurais e junto às comunidades de agricultores familiares e camponeses.
Conforme se pode supor a partir dos argumentos aqui desenvolvidos, tal processo de liberalização esteve quase ausente ou presente de forma muito mais branda nas economias centrais. Apesar de as regras do jogo estarem sendo cada vez mais ditadas pela presença corporativa privada, as nações ditas desenvolvidas contam com um ponto de apoio para a entrada nesse modelo, dado pela consolidação do abastecimento interno e da estruturação de sua produção agrícola, criado, conforme descrito aqui, a partir de um regime de forte presença estatal. Mesmo assim, ainda hoje, esses países mantêm e ampliam suas políticas de proteção de mercados e subsídios agrícolas, as quais são negadas ao restante da comunidade internacional. Não por acaso, ocorrem constantes desentendimentos e falta de acordos nas atuais negociações no âmbito da OMC.
A partir dessa leitura, pode se compreender que esse é um sistema agroalimentar que se encontra em permanente crise, uma vez que seus pressupostos e seus padrões de produção e comercialização têm se caracterizado pelo desmantelamento das economias locais e dos sistemas locais de produção e abastecimento alimentar. O deslocamento da questão alimentar da regulação estatal e de fortalecimento das estratégias de autoabastecimento (não sem a presença de intercâmbios obviamente) para uma perspectiva ideológica amparada na economia neoclássica, em que o sistema de mercado atua como centro do desenvolvimento humano, atinge frontalmente a construção social e histórica de constituição da alimentação como direito humano.
As histórias entrecruzadas do desenvolvimento, da Revolução Verde, dos subsídios no Norte, do ajuste estrutural e dos tratados de livre comércio constituem uma saga agrária de proporções mundiais e ajudam a explicar porque a pobreza e a sobreprodução – e não a escassez e o excesso de população – são as causas originárias da fome no planeta. (HOLT-GIMENEZ; PATEL, 2010, p. 50, tradução nossa).
Considera-se, assim, que o centro da crítica à atual forma de estruturação do sistema agroalimentar está no processo de mercantilização do alimento, por deslocar o papel central da alimentação como direito fundamental. Conforme já destacado, a alimentação se constitui, por um lado, em um processo de construção cultural e social na história das sociedades, cumprindo papel central no processo de reprodução social dos agrupamentos humanos, bem como no estabelecimento de interações e diálogos entre diferentes sociedades. Por outro, caracteriza-se como estrutura elementar para manutenção da vida humana por ser fonte básica para a existência de um organismo saudável. Pressupõe-se uma alimentação saudável para que o sujeito possa ter qualquer outro direito e inserir-se com dignidade na sociedade.
Em uma definição mais detalhada, o direito à alimentação é considerado como um Direito Humano Básico, sem o que não há direito a (sic) vida, não há cidadania, não há direito a (sic) humanidade, isto é, o direito de acesso à riqueza material, cultural, científica e espiritual produzida pelo gênero humano. As pessoas necessitam de alimento apropriado, no sentido quantitativo. No entanto, isto não é suficiente. Para o ser humano alimentar-se, o ato é ligado à tradição, vida familiar, amizade e celebrações coletivas. Quando comemos (sic) com amigos, com a família, comendo pratos de sua infância e de sua cultura, indivíduos renovam-se a si mesmos além do aspecto físico, fortalecendo sua saúde física e mental, assim como a sua auto-estima. (VALENTE et al., 1999 citado por VALENTE, 2002, p. 71).
Como foi descrito, esse sistema agroalimentar está organizado em diferentes setores ou atividades, todos afetados ou em processo de reestruturação impulsionado pela perspectiva de liberalização dos mercados e pela forte presença corporativa em sua normatização, organização e funcionamento. Nesse sentido, vários são os âmbitos e as portas de entrada a partir das quais se podem analisar os efeitos desse sistema agroalimentar em crise.
A leitura aqui proposta apoia-se no pressuposto da frágil eficácia e eficiência do atual modelo de agricultura hegemônico (sustentado nos preceitos da chamada Revolução Verde) em termos da promoção da soberania alimentar (Sobal) e segurança alimentar e nutricional (SAN), bem como nos impactos ambientais gerados através deste. Alguns elementos desta leitura foram abordados aqui anteriormente e são fruto de análise da perspectiva agroecológica desenvolvida nos demais textos desta publicação. O que se apresenta nas seções a seguir é uma análise de outros dois grandes elementos, que se articulam ao modelo de agricultura e configuram as principais bases de sustentação do atual sistema agroalimentar global, são eles: i) o controle corporativo no processo de estruturação do sistema agroalimentar; e ii) a expansão e o predomínio do setor varejista como fatores determinantes na forma de organização do sistema agroalimentar mundial e seus efeitos sobre as lógicas camponesas.
Segundo Ploeg (2008), de uma forma geral, podem ser identificados dois grandes modelos dominantes no processamento e distribuição de alimentos: o primeiro focado nos circuitos regionais e descentralizados que vinculam produção e consumo, normalmente dado em âmbito regional, e o segundo focado na forte centralização no processamento e comercialização de alimentos, operando cada vez mais em escala global.
Ploeg (2008) define o segundo modelo como aquele que rege as atuais normas de produção, processamento e comercialização dos alimentos e que estabelece uma ordem dominante, mesmo que não represente o grande volume de circulação mundial de alimentos, pois cerca de 85% da produção circula por circuitos regionais e descentralizados (PLOEG, 2008). Esse modelo centralizador e concentrador é definido pelo autor como “Império”, dadas as suas características de se tornar um modo de ordenamento dominante, noção que representa, de forma consistente, o atual quadro de concentração corporativa do sistema agroalimentar mundial e seu poder na definição de formas de normatização e funcionamento das atividades adjacentes desde a produção até o consumo alimentar. Segundo Ploeg, a lógica de organização corporativa em torno da questão alimentar resulta no seguinte processo:
[…] o Império é personificado por uma variedade de expressões específicas: grupos de agronegócio, grandes varejistas, mecanismos estatais, mas também leis, modelos científicos, tecnologias, etc. […] o Império não é apenas um fenômeno emergente e internamente diferenciado; ele consiste, acima de tudo, no fortalecimento mútuo e intrincado de uma grande variedade de elementos, relações, interesses e modelos diferentes. Esse intrincamento relaciona-se com a sociedade de forma coercitiva: todos os projetos (com atores individuais e coletivos), em qualquer nível, devem ser alinhados conforme as regras que a gramática do Império estabelece. […] Por meio do Império, a produção e o consumo de alimentos estão cada vez mais desconectados entre si, tanto no tempo como no espaço. Da mesma forma, a produção agrícola está descontextualizada, ou seja, está desconectada das especificidades dos ecossistemas locais e das sociedades regionais. (PLOEG, 2008, p. 20 e 21).
Essa forma de governança corporativa do “negócio alimentar” está baseada na criação de estruturas em rede, possibilitada, em grande parte, pela intensidade de fluxo global de capitais na atualidade, que constantemente migram de uma para outra atividade produtiva na busca de maiores ganhos. Da mesma forma, a evolução das tecnologias de informação e comunicação possibilita o desenvolvimento de estratégias de controle e determinação de procedimentos, que superam as limitações de tempo e espaço. Apoiam, de forma determinante, ainda, essa nova forma de governança a crescente pressão pela liberalização de mercados e a redução do papel dos Estados (DELGADO, 2010; PLOEG, 2008).
De fato, Ploeg discute esse processo a partir da análise da constituição dos impérios alimentares e considera que “a essência da atual fase da globalização é que ela introduz, literalmente por toda parte, conjuntos de normas e parâmetros generalizados que governam todas e quaisquer práticas locais específicas” (PLOEG, 2008, p. 255, grifos do autor). Dessa forma, estabelecem-se mecanismos de superação dos limites de espaço e temporais à expansão corporativa. O controle dos nós e fluxos dessa organização em rede possibilita às grandes corporações superar os limites de lugar e tempo, impondo sua dinâmica de organização e funcionamento aos espaços reais de produção e consumo (DELGADO, 2010; PLOEG, 2008).
A imposição de seus procedimentos e mecanismos de funcionamento delimita, mesmo que à distância, as possibilidades de realização da atividade produtiva real e concreta. Além disso, “à medida que se estendem esses modos organizativos, se bloqueiam, eliminam ou excluem padrões alternativos de funcionamento, de modo que, fora dos procedimentos utilizados por essas grandes corporações, fica difícil a sobrevivência” (DELGADO, 2010, p. 43, tradução nossa). A atividade produtiva local se vê premida pela imposição de padrões externos à sua realidade, definidos pelo poder de atuação dessas grandes corporações. Suas possibilidades de sobrevivência “no mercado” se reduzem ao atendimento desses procedimentos, o que compromete a autonomia da produção local e coloca em xeque sua viabilidade1.
É nesse sentido que se fala na constituição de impérios que se organizam em redes, de forma que o controle corporativo se dá não pela via da participação na esfera produtiva em si, mas pelo controle do fluxo de informações e pela delimitação dos mecanismos de organização e funcionamento das atividades produtiva e de consumo. Assim, “uma das características centrais do Império é que ele estrutura e reestrutura cada vez mais as práticas concretas nestes segmentos” (PLOEG, 2008, p. 112). Estabelece-se uma dinâmica em que os processos locais e territoriais se submetem a ditames externos a eles, porém de maior poder político e econômico, e a partir dos quais, o fluxo de capital se dá todo dessas periferias para o centro dessas redes (PLOEG, 2008).
Nessa perspectiva, a atuação das grandes corporações se baseia principalmente na incorporação de novos segmentos à sua dinâmica, na atuação em rede, na forma de controle dos fluxos e nós dos processos produtivos, apropriando-se das formas de riqueza existentes; reconfigurando sua forma de se organizar e relacionar com o mercado. Nesse sentido, conforme afirma Delgado (2010, p. 43, tradução nossa), “o centro nevrálgico da rede – a grande corporação – baseia, portanto, seu crescimento não na criação de riqueza, senão na atração – apropriação – da já criada”. Seguindo a linha proposta por Ploeg (2008, p. 121), “o Império não acrescenta nada, ele simplesmente combina e re-combina os recursos existentes”.
Um aspecto importante dessa leitura parte de que os lugares de produção locais, apesar de permanecerem existindo, deixam de funcionar a partir de sua própria dinâmica e estrutura social, cultural, econômica e ambiental preexistente. A dinâmica dos impérios impõe uma condição temporária a essa realidade concreta, em que aquela atividade, além de seguir as especificações estabelecidas desde o centro da rede, se vê afetada pelas condições dadas em outras realidades (nós da rede).
O que se observa é um processo de “desterritorialização” não no sentido espacial ou físico-geográfico, mas na perspectiva da sobreposição de uma territorialidade sobre outra anteriormente constituída, dada pelas relações sociais, econômicas, políticas e culturais de um determinado grupo social2. Conforme descreve Delgado (2010, p. 44, tradução nossa), “esta dinâmica nos mostra que, para construir o emaranhado de conexões subordinadas aos interesses dos impérios globais, se destrói, por sua vez, em todos os elos da cadeia, um conjunto de conexões essenciais para a manutenção da vida local”.
Dessa forma, cada vez mais, a atuação das grandes corporações se dá pela territorialização da sua ação nos mais diferentes âmbitos e espaços. Nessa perspectiva, ganha sentido a intensa dinâmica de fusões e aquisições, que lhe permitem controlar maiores fatias do mercado e, ao mesmo tempo, investir-se de maior poder econômico e político, que lhes dá mais condições de determinar padrões e mecanismos de funcionamento aos processos a elas subjacentes.
A concentração nas indústrias da vida permitiu que um punhado de empresas poderosas tomassem conta da agenda das pesquisas, ditassem acordos de comércio internacionais assim como políticas agrícolas e manipulassem a aceitação de novas tecnologias (a solução “baseada na ciência”) para aumentar os rendimentos dos cultivos, alimentar os famintos e salvar o planeta. (ETC GROUP, 2008, p. 7, tradução nossa).
Da mesma forma, amplia-se sua capacidade de investimento e de desenvolvimento tecnológico e, inclusive, de redimensionamento da demanda por meio de uma maior artificialização, que cria novos produtos (viabilizados pela Engenharia de Alimentos) e padrões de consumo. Não obstante, essa atuação na forma de constituição de oligopólios dá às grandes corporações mais condições de exercer pressão junto aos Estados (por vezes premidos, por vezes coniventes) a fim de abrir espaços para legalizar seus processos e procedimentos e para estabelecer mecanismos legais e políticas públicas que favoreçam sua expansão em detrimento de outras formas produtivas e organizacionais (PLOEG, 2008; SOLER, 2009).
De fato, o que se observa, na atualidade, é um intenso e crescente processo de oligopolização dos mercados no âmbito da alimentação. Um pequeno número de grandes empresas controla grandes fatias de mercado em cada setor produtivo do sistema agroalimentar, desde a semente e os insumos na agricultura até a comercialização dos produtos agrícolas, seu processamento e distribuição, conforme descreve Riechmann, referindo-se à atuação das grandes corporações: “através de fusões, participações e alianças com outros setores da cadeia alimentar, (as grandes corporações) detêm um controle vertical de enormes trechos do sistema alimentar, desde o gene até a estante do supermercado” (RIECHMANN, 2003, p. 258, tradução nossa).
A Figura 1 ilustra essa realidade. A partir de informações coletadas pelo ETC Group, pode-se observar o nível de controle dos mercados por parte de um pequeno grupo de empresas (as dez maiores) de cada setor.
Figura 1. Controle de mercado por parte das dez maiores empresas por setor no mundo.
Fonte: Guazzelli e Perez-Cassarino (2010).
No âmbito, por exemplo, da comercialização de grãos, duas empresas (Archer Daniels Midland e Cargill) controlam 75% do mercado internacional (HOLT-GIMENEZ; PATEL, 2010). Agrega-se a isso o fato de que as mesmas corporações atuam simultaneamente em vários setores. Esse é o caso das dez maiores produtoras de sementes do mundo: quatro delas também estão no grupo das dez maiores empresas de agroquímicos (Bayer, Monsanto, Syngenta e DuPont). No âmbito do processamento (fabricação de alimentos e bebidas), as dez maiores empresas controlam 26% do mercado mundial de alimentos industrializados. Embora esse não seja um percentual alto em termos absolutos (comparado ao nível de concentração de mercado no caso das indústrias de sementes, por exemplo), tem significativa importância pois é um elo da cadeia muito mais difuso do que o da produção agrícola e que, em três anos (entre 2004 e 2007), teve uma elevação de 14% nesse controle. Observa-se, ainda, que, somente no ano de 2007, foram realizadas mais de 400 fusões entre grandes empresas do setor e, se se levarem em conta as 100 maiores empresas, essas controlam 74% do mercado mundial de alimentos e bebidas processados (ETC GROUP, 2008).
Tão marcante quanto os números de concentração no mercado de alimentos é a velocidade dos processos de fusão observados nos últimos anos. No caso da produção de sementes, no ano de 2000, a fatia de mercado das dez maiores empresas era de 30% e a das empresas de agroquímicos era de 84%. Comparando-se esses percentuais aos que constam na Figura 1 (referentes a 2007), observa-se que aumentou a velocidade de aquisições, que também pode ser observada no setor de processamento dos alimentos e fortemente no setor de distribuição. Tal realidade reforça a perspectiva anteriormente apontada do comportamento desses impérios alimentares em relação à política de incorporações de valores e não de geração de novas riquezas, do controle do mercado e do domínio de determinado setor para impor seus ditames.
Essa realidade pressupõe um firme questionamento à proposição da abertura comercial e da perspectiva da regulação da demanda e oferta de alimentos por meio do mercado. Notadamente, o comportamento dos grupos empresariais dentro do sistema agroalimentar global demonstra um comportamento de oligopolização e consequente controle e regulação do mercado.
Assim, o mercado passa a fazer parte do projeto de conquista e controle das grandes corporações, fundindo-se a ele, ao invés de cumprir o papel de promotor da concorrência, por meio da qual se regularia a oferta e o acesso aos alimentos. Para muito além da bastante visível impossibilidade de se atingir situações de equidade e justiça no âmbito da alimentação mediante a regulação pelo livre mercado, o que se observa é como essa retórica ideológica estabeleceu os marcos a partir dos quais se viabilizou um intenso processo de concentração corporativa e consequente acumulação de riquezas por parte de um reduzido grupo de empresas, que, diga-se de passagem, estruturaram-se, em seu período, com base nas políticas de proteção comercial e forte regulação estatal do mercado de alimentos. Assim,
Os impérios alimentares, por exemplo, não funcionam apenas dentro dos mercados. Ao contrário, eles representam o controle sobre esses mercados. O Império é o mercado disfarçado. Ele faz com que o mundo pareça um mercado, uma vez que existem muitos processos de compra e venda e os fluxos associados. Contudo, a rota desses fluxos é monopolizada, e as transações associadas só podem ser realizadas de acordo com as condições impostas pelo próprio Império. (PLOEG, 2008, p. 266).
Dessa forma, os impérios alimentares controlam os pontos de entrada e os pontos de venda (PLOEG, 2008) dessas redes estabelecidas e controlam as condições de acesso ou não aos seus processos. Tal perspectiva aponta para uma forma de “comportamento” das grandes corporações na atualidade, que vão constituindo seus espaços sociais, políticos e geográficos de controle e domínio dos processos produtivos e dos mercados adjacentes. Nesse sentido, cabe aqui ressaltar que, quando se fala de sistema agroalimentar em crise, está se referindo à sua capacidade de possibilitar a condição básica de garantia da alimentação como direito humano universal. Porém, o que se constata é que não há uma crise para os atores hegemônicos que atuam nessa dinâmica.
Um importante ponto de inflexão desse novo “regime alimentar imperial” – conforme definiu Ploeg, a partir da construção histórica dos diferentes “regimes alimentares”, feita por Harriet Friedmann (PLOEG, 2008) – tem a ver com o processo de concentração corporativa no mercado de varejo, ou seja, no âmbito da distribuição alimentar. Muito provavelmente esse é o setor com os mais altos níveis de aquisições e fusões (observadas no dia a dia das médias e grandes cidades) e, ao controlar a etapa final da “cadeia agroalimentar” (o consumo), pressupõe um processo de realinhamento dos demais setores a jusante do momento da aquisição dos alimentos, aspectos aprofundados a seguir.
Conforme o argumento aqui desenvolvido, a dinâmica imposta pela atuação das grandes corporações alimentares em rede motiva e pressupõe um crescente processo de concentração nos mercados. Tal realidade é recente, porém bastante intensa no que se refere ao setor de distribuição de alimentos, no qual as grandes redes de supermercados têm ocupado espaços cada vez mais importantes.
A análise dessa dinâmica é particularmente importante uma vez que, em paralelo a esse processo de concentração, também se observam uma crescente influência e determinação de normas e padrões de produção e abastecimento impostos desde a ponta final do negócio alimentar. A tendência à oligopolização dos mercados e seu caráter determinante no estabelecimento de procedimentos muito provavelmente têm sua maior expressão, na atualidade, no âmbito da grande distribuição.
As grandes empresas de varejo têm sido as de maior crescimento nos últimos anos. As 100 maiores do setor controlam 35% do mercado mundial, e, desse total, 40% são dominados por apenas dez empresas (Tabela 1). Somente o Walmart (Estados Unidos) responde por 10% do volume comercializado pelas 100 maiores e por 25% do volume das dez gigantes. Já Carrefour (França) e Tesco (Reino Unido) controlam juntos 50% do mercado das dez maiores (ETC GROUP, 2008). A partir dos dados da Tabela 1, pode-se ter uma ideia dos volumes movimentados pelas principais redes supermercadistas mundiais.
Tabela 1. As dez maiores empresas de distribuição comercial no ano de 2007.
Empresa |
Vendas de alimentos |
Vendas totais |
% de venda de alimentos nas vendas totais |
1. Walmart (Estados Unidos) |
180.621 |
391.135 |
46 |
2. Carrefour (França) |
104.151 |
141.087 |
74 |
3. Tesco (Reino Unido) |
72.970 |
100.200 |
73 |
4. Schwarz Group (Alemanha) |
58.753 |
70.943 |
83 |
5. Aldi (Alemanha) |
55.966 |
65.251 |
86 |
6. Kroger (Estados Unidos) |
52.082 |
73.053 |
71 |
7. Ahold (Reino Unido) |
50.556 |
62.614 |
81 |
8. Rewe Group (Alemanha) |
49.651 |
56.324 |
88 |
9. Metro Group (Alemanha) |
49.483 |
73.538 |
71 |
10. Edeka (Alemanha) |
45.397 |
51.272 |
89 |
Total das dez maiores |
719.630 |
1.085.417 |
Fonte: ETC Group (2008).
Segundo Wilkinson (2008, p. 132), “a participação dos supermercados no total do varejo nos seis países líderes da América Latina varia de 45% a 75%, com o Brasil em primeiro lugar, seguido por Argentina, Chile, Costa Rica, México e Colômbia”. No México, somente o Walmart representa 50% das vendas em supermercado.
No caso brasileiro, os índices de concentração são ainda maiores. A liberalização e a abertura de mercados a partir da década de 1990 propiciaram condições vantajosas para a entrada das grandes redes no País. Entre 1994 e 2005, as três maiores redes de supermercados passaram de uma participação de 18,5% para 38% no mercado varejista brasileiro. Dessas três, apenas uma é de origem brasileira (o Grupo Pão de Açúcar), embora já tenha 50% de seu controle em mãos do Grupo Casino, da França. As demais redes (Carrefour e Walmart) são estrangeiras. Essa última merece um olhar especial, considerando sua recente inserção no Brasil: passou do controle de 1,6% do mercado em 1999 para 11% em 2005, sempre por meio de intensos processos de fusão e aquisição (FLEXOR, 2008).
A Tabela 2 representa os aumentos de faturamento das dez principais redes atuantes no Brasil. De fato, a tendência de aumento da concentração é constante no Brasil: a participação das cinco maiores distribuidoras no mercado varejista passou de 40% em 2004 para 46% em 2010. Nesse mesmo período, o faturamento do setor como um todo aumentou em 106,3%, o que totalizou R$ 201,6 bilhões (SALLOWICZ; ROLLI, 2011). No presente momento, a Companhia Brasileira de Distribuição, cujo grupo principal é o Grupo Pão de Açúcar, controla 18% desse mercado, seguido por Carrefour (14,4%), Walmart Brasil (11,1%), Gbarbosa (1,7%) e Zaffari (1,2%), respectivamente (SALLOWICZ; ROLLI, 2011).
Tabela 2. Classificação das empresas de varejo por volume de venda no Brasil (em bilhões de reais).
Empresa |
2006 |
2007 |
Carrefour |
12,91 |
19,26 |
Grupo Pão de Açúcar |
16,46 |
18,76 |
Walmart |
12,91 |
15,00 |
Gbarbosa/Cencosud |
1,49 |
1,89 |
Zaffari |
1,47 |
1,61 |
EPA |
1,46 |
1,54 |
Bretãs |
1,36 |
1,50 |
Prezunic |
1,19 |
1,46 |
Angeloni |
1,09 |
1,19 |
Super Muffato |
– |
1,15 |
Fonte: Wilkinson (2008).
De forma a ampliar sua participação no mercado de alimentos, as grandes redes desenvolvem estratégias agressivas de ocupação de espaço nos mercados locais e regionais. Inicialmente, essa expansão está voltada à entrada em grandes e médias cidades, onde, pelo seu caráter global, essas empresas conseguem impor, num primeiro momento de implantação, reduções consideráveis nos preços dos produtos, o que atrai consumidores e, ao mesmo tempo, desestabiliza concorrentes. As estratégias normalmente passam pela abertura de novos locais próprios, porém há um recorrente processo de aquisições e fusões com redes locais e regionais, que facilitam a sua entrada em novos mercados (SOLER, 2009).
Essa estratégia responde, em grande parte, ao perfil da atividade da comercialização, uma vez que o contato direto com o consumidor demanda mais conhecimento dos hábitos e das preferências alimentares locais, bem como do perfil de renda e de comportamento econômico da população. Nesse sentido, a realização de fusões, parcerias e aquisições de empresas locais e regionais tem papel estratégico, pois permite absorver delas o conhecimento das condições e da realidade locais (FLEXOR, 2008; SOLER, 2009).
Diante disso, à implantação dessas novas redes corresponde um decrescimento significativo dos empreendimentos comerciais locais e regionais. Pequenos e médios comércios se veem diretamente afetados por essa concorrência, seja em razão da disputa de preços, seja em razão do estabelecimento de novos padrões de produto e de consumo (MALUF, 1999; SOLER, 2009; WILKINSON, 2008). Vê-se plasmada, nessa realidade, a dinâmica de organização e estruturação dos impérios alimentares. Conforme destaca Marta Soler, à medida que esse avanço das grandes redes vai se consolidando nas realidades locais, acentua-se a polarização entre as formas tradicionais de comercialização e as formas modernas dadas pelas grandes redes de hipermercados. A autora acrescenta que
A isto, se soma a crescente desvinculação entre os sistemas comerciais regionais e os sistemas produtivos alimentares locais. As pequenas e médias empresas agroalimentares locais encontram cada vez mais dificuldades para acessar os mercados, inclusive os mais próximos, e perdem o controle sobre as condições de qualidade e preço em que seus produtos chegam ao consumidor. (SOLER, 2009, p. 19, tradução nossa).
É importante destacar que a lógica imposta por essa forma organizacional em rede das grandes corporações não somente impõe novos padrões à sua dinâmica e aos seus espaços de atuação, mas também acaba por determinar as condições e os marcos institucionais para todas as atividades econômicas no entorno do setor em questão. A expansão das grandes redes caracteriza “[…] o supermercado como uma inovação organizacional radical, que redefine a dinâmica do sistema agroalimentar, bem como a participação de todos os outros atores na cadeia, a partir do varejo” (WILKINSON, 2008, p. 130).
No conjunto do sistema agroalimentar, a proximidade com o público consumidor confere ao setor de distribuição um papel determinante de definição dos padrões de qualidade dos produtos e procedimentos de produção, beneficiamento e transporte para todas as atividades a jusante do momento do consumo final. Nesse sentido, a agricultura como setor básico, incluindo todos os demais elos da cadeia agroalimentar, passa a ter suas características de produção (seleção de culturas, padrões de qualidade, volumes, periodicidade) determinadas a partir da ponta final do consumo. Tal processo resulta na exclusão daqueles grupos e setores da produção que, por falta de capital, nível de informação e capacitação e outros aspectos, não se adequam aos critérios impostos de fora. Particularmente no âmbito da agricultura familiar, as exigências de volume, frequência e regularidade de entrega levam a um considerável comprometimento de sua inserção nessa nova dinâmica de mercado (BELIK, 2000; MALUF, 1999; SOLER, 2009). Porém, todos os setores se veem, de uma ou outra maneira, afetados, conforme destaca Wilkinson (2008, p. 126):
As regras de jogo neste setor, contudo, como aliás no conjunto do sistema agroalimentar, tem (sic) se transformado dramaticamente com a modernização e a transnacionalização do varejo na forma dos super e hipermercados. Com um grande supermercado substituindo centenas de lojas de “secos e molhados” tradicionais, a exigência de escala se impõe brutalmente nesse setor. […] Se isto não fosse suficiente, os supermercados, ao mesmo tempo, impõem uma nova dinâmica à coordenação do mercado a partir da implantação de sistemas de logística que, para o produtor, implica a capacidade de suprir e custear uma cesta mínima de produtos em forma planejada e contínua.
Dessa forma, no que se refere à comercialização dos alimentos, essa capacidade desenvolvida pelas grandes redes de determinar padrões, periodicidade e perfis de produtos tem relação direta com a sua capacidade de construir demanda, ou seja, estabelecer o leque de produtos possíveis de serem ofertados. Com isso, colocam-se em questão as análises que atribuem um papel central ao consumidor na determinação dos padrões de produção e consumo de alimentos ou aquelas que indicam que o redesenho dos hábitos alimentares da população tem determinado os padrões da indústria. Embora haja uma complexa relação entre demanda e oferta e entre possibilidades e necessidades de consumo, cabe ressaltar que essa suposta “autonomia” do consumidor é relativa e também predeterminada, conforme destaca Soler (2009, p. 18, tradução nossa):
Portanto, a crescente fragmentação do consumo alimentar, que se plasma na convivência da comida rápida americana com um crescente consumo de produtos frescos exóticos nos países industrializados ou no êxito das comidas “étnicas” ou na permanência dos gostos gastronômicos locais, não pode considerar-se exclusivamente um exercício da “soberania do consumidor”. A isso se unem o que o poder estratégico da distribuição também molda e orienta a reestruturação dos demais setores dos sistemas agroalimentares neste período.
Dessa forma, o entendimento do papel que o setor de distribuição de alimentos cumpre dentro do sistema agroalimentar torna-se importante ferramenta de compreensão das formas de exclusão de grupos menos capitalizados e estruturados nas atividades econômicas que antecedem a comercialização. No caso da agricultura familiar e camponesa, é particularmente importante considerar essa perspectiva, pois representa o mais novo campo de ameaças (e, por vezes, de oportunidades) a sua sobrevivência e fortalecimento, uma vez que, conforme descreve Maluf (2004, p. 300), “os empreendimentos agroalimentares de pequeno e médio portes constituem componente central para uma estratégia de desenvolvimento assentada em atividades econômicas promotoras de equidade e inclusão social, em bases sustentáveis”.
Compreender a dinâmica atual do sistema agroalimentar torna-se, portanto, fundamental para poder localizar o espaço que ocupam e as possibilidades de alternativas para esses empreendimentos. O vasto campo de ameaças representa um importante ponto de debate no âmbito do acesso e construção de mercados para a agricultura familiar e é particularmente relevante no âmbito da Agroecologia. De forma mais ampla, esse debate se impõe na perspectiva da promoção da Sobal e SAN como um todo – haja vista sua concepção baseada no acesso universal a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente (MALUF, 2009). Há de se colocar importante ênfase na discussão em torno dos mercados e da “universalização” do acesso aos alimentos, visto que esse enfoque estabelece um tenso diálogo com a necessidade de viabilização econômica da agricultura familiar e camponesa.
A Agroecologia, como proposta alternativa de organização das atividades agroalimentares, funda-se a partir de uma racionalidade camponesa que, em diálogo com o saber científico, se propõe a construir alternativas técnicas, organizativas e econômicas que possibilitem a viabilização da agricultura familiar e camponesa, portanto, a garantia de sua reprodução social. Abrem-se, nesse sentido, as possibilidades de a Agroecologia constituir-se em um campo de possíveis respostas às atuais crises da modernidade, notadamente as crises alimentar e ambiental.
Na seção a seguir, busca-se trazer elementos sobre a formulação dos conceitos de SAN e, mais recentemente, de Sobal como referências a serem estabelecidas para a construção de sistemas agroalimentares promotores do direito humano à alimentação adequada. Nesse sentido, a Agroecologia caracteriza-se como uma das alternativas para a (re)construção dos sistemas agroalimentares, de forma a promover equidade social e econômica e adequação ambiental dos sistemas de produção.
A construção do conceito de SAN tem particularidades no que se refere às elaborações realizadas no âmbito da academia e da sociedade civil no Brasil. O histórico debate sobre as questões da fome (notadamente pela atuação de Josué de Castro) tornou mais complexa a abordagem de SAN no contexto brasileiro e levou a um tratamento multidimensional da questão agroalimentar e à superação de abordagens mais simplificadoras dessa importante temática, como nos conceitos propostos pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Como síntese, pode-se apresentar a seguinte declaração, aprovada em 2004, durante a realização da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Olinda, PE:
A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, cultural, econômica e ambientalmente sustentáveis. (CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2004, p. 2).
A visão construída no âmbito da sociedade civil brasileira e posteriormente assumida institucionalmente, mediante a criação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan)3, acarreta o atendimento de diversas dimensões na promoção da SAN em diversas dimensões (que abrangem aspectos relacionados aos modelos de produção, à disponibilidade e ao acesso aos alimentos, à qualidade dos alimentos, às perspectivas sociais e culturais e à educação alimentar e nutricional) e demanda pleno processo de articulação da sociedade civil.
Esse entendimento amplia e qualifica o debate em torno da segurança alimentar, principalmente se forem levados em conta os poucos avanços no cenário internacional, especialmente no âmbito da FAO, no que se refere à evolução do conceito, adotado a partir dos anos 1970 e notadamente vinculado tão somente à produção e disponibilidade de alimentos, conforme pode ser observado na própria declaração da Cúpula Mundial da Alimentação de 1996:
Existe segurança alimentar quando todas as pessoas têm, a todo momento, acesso físico e econômico a suficientes alimentos inócuos e nutritivos para satisfazer suas necessidades alimentícias e suas preferências quanto aos alimentos, a fim de levar uma vida ativa e saudável. (FAO, 2006, tradução nossa)
No Brasil, a abordagem da SAN assume forte caráter de estímulo à participação social. Com a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em 1994 e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) em 1998, o tema da SAN ganhou corpo no âmbito da sociedade civil. A aprovação da Losan, que prevê a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), institucionaliza a criação de uma rede de conselhos municipais e estaduais, além do nacional, e destaca o debate em torno das políticas de SAN como ação diretamente atrelada a um forte processo de participação social. Segundo Marques (2010, p. 80), “a proposta de segurança alimentar apresenta aqui uma faceta notável, aquela de estimular uma forte mobilização social, com vistas a uma democratização substantiva do país, representada, em primeiro lugar, pelo acesso a uma alimentação adequada”.
A dimensão tomada pelo conceito de SAN no Brasil amplia, então, sua abrangência e estabelece um vínculo direto entre sua promoção e a garantia do direito humano à alimentação adequada (DHAA), outro conceito cuja compreensão é fundamental para tratar das questões relacionadas ao combate à fome e à estruturação dos sistemas agroalimentares. Para Maluf (2004, p. 300), “há um objetivo específico ao tema agroalimentar, que é o de ampliar a oferta de alimentos de qualidade de um modo que favoreça a expressão da diversidade de hábitos de consumo no País”.
Junto com a evolução do conceito da SAN e da afirmação da alimentação como direito humano, o debate em torno das questões alimentares foi ganhando espaço dentro dos movimentos sociais, de forma mais acentuada dentro dos movimentos vinculados à agricultura, com forte presença de organizações da agricultura familiar e camponesa, de indígenas e de pescadores artesanais. A evolução desse debate está marcada pelo enfrentamento às atuais políticas adotadas por Estados e organismos internacionais na organização do sistema agroalimentar mundial.
Nesse cenário, a partir da realização de um fórum paralelo à Cúpula Mundial da Alimentação de Roma, em 1996, as organizações vinculadas à Via Campesina lançaram o conceito de Sobal, compreendido como:
O direito dos povos a definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a alimentação a toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses de produção, de comercialização e de gestão, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental. (VIA CAMPESINA, 2009).
Alguns princípios são necessários à implementação desse conceito. Segundo defendido pela Via Campesina, para alcançar a Sobal, é necessário que: (1) a alimentação seja enfocada como direito humano; (2) a reforma agrária seja realizada; (3) os recursos naturais sejam protegidos; (4) o comércio de alimentos seja reorganizado; (5) a globalização da fome seja eliminada; (6) a paz social se estabeleça, ou seja, estar livres da violência e da repressão; e (7) haja o controle democrático dentro do sistema agroalimentar (SEVILLA-GUZMÁN; SOLER, 2010).
Essa abordagem tem origem eminentemente popular, centrada no fortalecimento das comunidades locais (calcadas em uma agricultura de base camponesa), no incremento dos mercados internos e na valorização dos saberes tradicionais e da agrobiodiversidade. Incorpora-se a essa proposta uma marcante presença nas discussões referentes ao mercado internacional de alimentos e suas políticas protecionistas, bem como na orientação dos subsídios agrícolas (SEVILLA-GUZMÁN; SOLER, 2010). Desse modo:
As raízes da soberania alimentar estão na vida e na luta dos agricultores camponeses, os pescadores e povos indígenas. À diferença de vários outros termos inventados por intelectuais, autoridades políticas e burocratas, a soberania alimentar surge das lutas camponesas como a necessidade de criar um discurso forte, radical e que abarque as realidades e necessidades locais, que possa ser escutado e compreendido por todo mundo. (GRAIN, 2006, p. 40).
O conceito de Sobal marca uma evidente oposição e contraste com as políticas neoliberais no comércio internacional de alimentos e com o modelo da agricultura industrial “moderna”, que se torna impermeável a uma possibilidade de adequação à realidade dos cultivos e populações locais. Diante disso:
[…] a soberania alimentar implica que o sistema alimentar mundial deveria dar um giro de 180 graus. Tem sido os camponeses, os pescadores tradicionais, os pastores e os povos indígenas quem tem alimentado ao mundo faz milhares de anos. Para conquistar um mundo sem fome, um mundo onde todos e todas tenham acesso a alimentos nutritivos produzidos localmente, todos eles necessitam ocupar novamente o centro do cenário. (GRAIN, 2006, p. 43).
Nesse sentido, os conceitos de SAN e Sobal apresentam caráter complementar e se articulam em diferentes âmbitos com a finalidade de garantir a promoção do direito humano à alimentação adequada. Para tanto, aspectos vinculados aos modelos de produção, estrutura fundiária e políticas agrícolas e agrárias têm particular relevância, assim como aspectos vinculados à qualidade dos alimentos, à educação alimentar e ao consumo e à cultura e conhecimento associados ao alimento. Da mesma forma, a abordagem proposta pelos dois conceitos compreende aspectos relativos aos mecanismos de abastecimento e relações de mercado que se estabelecem na sociedade com vistas a possibilitar a universalidade do acesso aos alimentos.
Pode-se, então, falar de uma construção social dos mercados de alimentos orientada por uma concepção de SAN e Sobal, com vistas a garantir o acesso universal aos alimentos, a disponibilidade e regularidade de oferta, a sustentabilidade ambiental dos mecanismos de comercialização, o redesenho das relações sociais e, inclusive, a participação social nos mercados (GRAVINA, 2004).
Esse parece ser um dos principais aspectos a merecer aprofundamento em termos das possibilidades de articulação entre os conceitos de SAN e Sobal. Em primeiro lugar, os padrões hegemônicos de estruturação e organização do sistema agroalimentar global, conforme debatido anteriormente, configuram um contexto gerador de insegurança alimentar e que (conforme a crítica realizada pelos movimentos sociais reforça) se confronta com os preceitos da Sobal e SAN. Isto é, a forma como o mercado de alimentos se estrutura na atualidade acaba por excluir atores importantes da produção e distribuição de alimentos em razão basicamente do intenso processo de concentração corporativa e dos padrões hegemonicamente definidos como necessários à inserção no mercado agroalimentar.
Em segundo lugar, por se tratar de conceitos amplos que se caracterizam como princípios a nortear as políticas públicas e as ações da sociedade civil, faz-se necessário que iniciativas práticas e construções teóricas pragmatizem esses princípios, de forma a estabelecer referências e parâmetros sobre o que significa a execução efetiva e diária desses conceitos. A implementação de propostas de mercados agroalimentares alternativos, bem como a reflexão e sistematização de ideias em seu entorno, torna-se importante tarefa para demonstrar, nesse âmbito, quais os caminhos possíveis para a reorganização de um sistema agroalimentar que tem sido particularmente ineficiente no que se refere à realização do direito humano à alimentação e, consequentemente, à Sobal e SAN. Conforme afirma Schmitt (2011, p. 6):
[…] o que está em jogo, na verdade, é o papel dos mercados como um instrumento de orientação, ou melhor, na reorientação dos fluxos de energia e materiais que dão sustentação às atividades econômicas, reorientação esta que implica, também, formas mais equitativas de apropriação e distribuição da riqueza gerada pelo setor agroalimentar.
No que tange ao debate em torno da Agroecologia, abordagens mais atualizadas passam a expor a necessidade de que seu enfoque se amplie para uma abordagem de construção de sistemas agroalimentares alternativos, colocando em questão a necessidade de, ao lado do desenvolvimento de formas ambientalmente sustentáveis de produção, desenvolver, entre outros aspectos, mecanismos diferenciados de comercialização, considerando inclusive que
[…] o objetivo da Agroecologia não é, simplesmente, contribuir para uma produção mais sustentável, dentro dos mecanismos do desenvolvimento limpo, ou para ocupar nichos de mercado de produtos “verdes” dentro das políticas da globalização econômico-ecológica. (LEFF, 2002, p. 44).
Nesse sentido, considera-se relevante ampliar o debate em torno da Agroecologia de modo a redimensionar o enfoque para além da produção agrícola a partir de uma leitura crítica do sistema agroalimentar global, com vistas a possibilitar, então, a construção (no âmbito da Ciência e da práxis agroecológica) de um arcabouço teórico e de uma vivência prática e cotidiana de iniciativas que configurem mecanismos alternativos de mercado. Tais iniciativas consolidam processos diferenciados de desenvolvimento rural, baseados na construção de sistemas agroalimentares alternativos em escala local, mas que visam (e, em muitos casos, realizam) articulações regionais, nacionais e internacionais, tendo como um dos pilares de sustentação a construção de circuitos de proximidade de comercialização e a valorização dos mercados locais. Dessa forma:
a práxis socioeconômica da Agroecologia avança na construção de sistemas agroalimentares alternativos que se caracterizam por reequilibrar as relações de poder entre produção e consumo, aproximando os agricultores e criadores aos espaços de consumo estabelecendo relações cooperativas equilibradas e negociadas com os consumidores sobre bases comuns que transcendem as exclusivamente mercantis, atualizando, assim, valores historicamente vinculados ao campesinato na construção de sociedades mais justas e sustentáveis no contexto atual da globalização. (SEVILLA-GUZMÁN; SOLER, 2010, p. 205, tradução nossa).
Nessa perspectiva, a proposta da Agroecologia torna-se uma ferramenta relevante para a consecução dos objetivos da SAN e da Sobal. Ambos os conceitos sugerem um programa em que a agricultura familiar e camponesa, a sustentabilidade ambiental e a equidade nas relações de mercado (para falar dos aspectos diretamente vinculados à temática aqui abordada) se tornem precondições para a estruturação de sistemas agroalimentares que garantam o direito humano à alimentação adequada (SEVILLA-GUZMÁN, 2006; SEVILLA-GUZMÁN; SOLER, 2010). Assim, a Agroecologia pode fornecer as ferramentas metodológicas, técnicas e organizacionais que possibilitem a execução de iniciativas concretas de articulação entre produção e consumo em bases sustentáveis e socialmente justas. Isso é, a Agroecologia torna diária a perspectiva da construção de sistema agroalimentares alternativos que gerem as condições para o enfrentamento dos padrões hegemônicos do sistema agroalimentar global. Conforme destaca Schmitt (2011, p. 6):
[…] a transição para novos formatos de produção, processamento e consumo de alimentos, socialmente justos e ambientalmente sustentáveis, coloca em questão, portanto, as estruturas de poder que hoje governam o sistema agroalimentar, apontando para a necessidade de um novo equilíbrio entre agentes econômicos privados, Estados Nacionais, organismos multilaterais e territórios.
Nesse sentido, particular esforço foi realizado pelo Grupo de Trabalho em Soberania e Segurança Alimentar da Articulação Nacional de Agroecologia (GT/SSA-ANA), que sistematizou experiências em SAN e Agroecologia e elaborou algumas dimensões iniciais de articulação entre essas perspectivas. Tal esforço possibilitou a identificação de aspectos concretos à organização dos sistemas agroalimentares, que permitem gerar e analisar cenários de produção, abastecimento e consumo de alimentos com vistas a promover SAN e Sobal. Segundo as organizações que integram o GT, as seguintes dimensões possibilitam uma leitura articulada entre Agroecologia, SAN e Sobal:
Particular relevância assume o tema da constituição de mecanismos alternativos de mercado no âmbito da Agroecologia. O próprio GT tomou para si essa temática como central para a análise da constituição de sistemas agroalimentares alternativos (PEREZ-CASSARINO, 2010). Esse aspecto torna-se importante pelo enfrentamento que se propõe a uma característica fundamental do sistema agroalimentar hegemônico: a mercantilização do alimento. Além disso, a análise dos mercados de alimentos tem caráter agregador, o que possibilita uma leitura a partir do campo da produção, dos mecanismos de distribuição e das necessidades e do perfil do consumo, ou seja, articula diferentes atividades, atores e territórios.
A perspectiva de mercados que a Agroecologia propõe confere elementos práticos à realização da SAN e da Sobal por pressupor a configuração de redes e canais de comercialização que “se constroem através de alianças que redefinem a articulação entre a produção e o consumo de alimentos, baseada em critérios de proximidade, sustentabilidade e equidade” (SOLER; CALLE, 2010, p. 280, tradução nossa). Obviamente, esses processos não ocorrem sem contradições e conflitos (característicos de processos de caráter alternativo e em construção), principalmente porque têm de se dar no âmbito do meio socioeconômico e cultural e nos próprios territórios onde o modelo a que esses processos se opõem é hegemônico. Segundo Marques (2010, p. 83):
Esta proposta de soberania alimentar enfatiza os circuitos locais de produção-consumo […] a ideia de uma aliança entre agricultores e consumidores é considerada estratégica. Os consumidores devem tomar consciência de que sua qualidade de vida está intimamente associada aos modelos agrícolas e seus múltiplos serviços ambientais. Esta multifuncionalidade só emerge quando as paisagens estão dominadas por unidades produtivas pequenas e biodiversificadas, sendo, no fim das contas, mais produtivas que as grandes monoculturas.
Em síntese, trata-se de configurar processos que articulem as dimensões sociais, econômicas, culturais e ambientais que redesenhem as relações de produção, abastecimento, processamento e consumo dos alimentos. Os conceitos de SAN e Sobal estabelecem os princípios orientadores de políticas e ações da sociedade civil nesse sentido e constituem-se em “bandeiras de luta” por justiça, equidade socioeconômica e adequação cultural e ambiental das atividades agroalimentares.
A partir dessa lógica, a Agroecologia se constitui como um dos ferramentais técnicos, econômicos e políticos que possibilitam a construção de sistemas agroalimentares alternativos, nos quais o redesenho das relações de mercado cumpre papel central. É o que ressaltam Sevilla-Guzmán; Soler (2010, p. 212, tradução nossa):
[…] a soberania alimentar centra-se, então, na redefinição do sistema agroalimentar sob princípios agroecológicos, em que a produção de alimentos resida em sistemas produtivos locais agroecológicos nas mãos de camponeses e agricultores familiares destinados a alimentar a população local através de mercados locais onde prevaleçam relações de poder equilibradas que permitam aos camponeses viver e acessar os alimentos a preços razoáveis.
Ou seja, a Agroecologia fornece os elementos concretos que possibilitam o redesenho dos sistemas agroalimentares, no sentido de sua descentralização e adequação ambiental, social, cultural e econômica. Além disso, a Agroecologia precisa imbuir-se da perspectiva de constituição de sistemas agroalimentares como um todo, superando abordagens puramente técnicas ou centradas numa leitura essencialmente rural para, a partir daí, propor formas alternativas de produção, mas também de processamento, abastecimento e consumo de alimentos. A articulação entre as abordagens da SAN e Sobal com a agroecologia possibilita o marco conceitual e político que abre esses caminhos, construindo novas territorialidades, a partir das quais a relação com os alimentos se (re)construa em novas bases, fundadas na solidariedade, justiça, sustentabilidade ambiental e na valorização das culturas e saberes locais, de forma a resgatar sua perspectiva enquanto direito humano universal.
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