Considerações finais
Claudenir Fávero
Maria Emília Lisboa Pacheco
Ao longo da história, podemos identificar que ocorreram mudanças de caminho a partir de acontecimentos isolados, menores, invisíveis […]. Por toda parte existem iniciativas muito importantes […]. Há experiências na agricultura, na agroecologia, na biologia, na educação, nas cooperativas, há a economia que chamamos de social e solidária. Temos a necessidade de recusar a grande agricultura capitalista industrializada para defender os pequenos proprietários e a agricultura familiar […] Mas eu digo também que esses processos, que começam localmente e se firmam, devem confluir (MORIN, 2012, p. 14).
A industrialização capitalista da agricultura brasileira contou com o incentivo e o fomento do Estado nacional por meio de seus sucessivos governantes, especialmente a partir da década de 1950, e consolidou-se com o advento do neoliberalismo na década de 1990. A aliança entre o Estado brasileiro e as grandes corporações multinacionais do agronegócio possibilita a manutenção do superavit comercial, por meio das commodities agrícolas, e a obtenção de lucros exorbitantes para as corporações às custas da exaustão das riquezas naturais e da expropriação dos meios de vida das populações tradicionais e camponesas.
Utilizando-se de sua nova roupagem – o agronegócio –, as elites ruralistas impregnam, na sociedade brasileira, a percepção de que a utilização dos equipamentos e insumos industriais é a única forma possível de praticar a agricultura e de prover a crescente população humana dos alimentos necessários a sua manutenção e reprodução. Contam, para isso, com a contribuição das tecnologias oriundas do avanço do conhecimento científico vinculado à Engenharia Genética e à Biotecnologia, que se expressam, por exemplo, na produção dos organismos geneticamente modificados (os transgênicos), com a aplicação da informática e da geotecnologia nas operações agrícolas mecanizadas (a denominada agricultura de precisão) e com os métodos, cada vez mais intensivos, de produção e aplicação de agrotóxicos e adubos sintéticos.
Além da alta dependência de recursos naturais não renováveis (combustíveis fósseis e fontes de nutrientes minerais) e da degradação de recursos renováveis (solos, água e biodiversidade), a agricultura capitalista industrializada tem sido uma das principais responsáveis pela presença/aumento de produtos tóxicos e cancerígenos nas cadeias alimentares e pela promoção das mudanças climáticas (aumento da temperatura atmosférica, concentração da precipitação com consequente prolongamento das estações secas), seja em escala global (aumento dos gases de efeito estufa) ou em escala regional (erosão dos solos, secamento de nascentes e destruição da biodiversidade).
A aliança entre o Estado brasileiro e as grandes corporações multinacionais e a liberalização dos mercados de exportação/importação propiciaram também a subordinação da produção e do abastecimento de alimentos à lógica de mercado em detrimento da produção voltada para o consumo alimentar local, o que levou à instalação de uma rede centralizada de beneficiamento, processamento e distribuição de alimentos concentrada nas grandes corporações, a que Ploeg (2008) denominou de impérios alimentares. Isso corrobora com a abordagem apresentada pelo autor do Capítulo 5, que considera a concentração corporativa uma das características estruturais do sistema agroalimentar global. Portanto, o mesmo modelo que se perpetua utilizando o argumento falacioso da necessidade de aumento na produção de alimentos para uma população humana crescente é o responsável pelo aprofundamento da insegurança e pela perda da soberania e segurança alimentar e nutricional do povo brasileiro.
Embora vários pensadores brasileiros já tenham formulado críticas e contraposições à incorporação do pacote tecnológico da Revolução Verde à agricultura brasileira desde a década de 1970, o termo “Agroecologia” passou a ser utilizado no Brasil somente no final da década de 1980/início da década de 1990 a partir da interação do movimento brasileiro de agricultura alternativa com autores latino-americanos, oriundos especialmente do Chile e do Peru. Conforme apontado pelos autores do Capítulo 2, a partir dos Estados Unidos, mas pelas mãos do chileno Miguel Altieri, a Agroecologia chegou ao Brasil como um discurso científico. No entanto, em função da sua visão holística e da sua abordagem sistêmica, que incorpora as dimensões e dinâmicas dos processos sociais e integra os conhecimentos multidisciplinares com os saberes tradicionais e camponeses, principalmente a partir da Escola Espanhola1, a Agroecologia passa a ser a nova referência epistemológica e substitui a designação “agricultura alternativa”. Sendo assim, no Brasil, a Agroecologia, desde o início do uso do termo, é identificada como um movimento social que se contrapõe frontalmente à agricultura convencional e a sua atual denominação – o agronegócio.
A Agroecologia vem se enraizando em todos os ambientes e contextos socioeconômicos brasileiros com uma salutar diversidade de expressões, percepções e perspectivas, vem permeando, cada vez mais, os circuitos científico-acadêmicos e, ao mesmo tempo, vem se colocando firmemente no embate político-ideológico como opção sustentável de vida no campo. Materializa-se, portanto, como um movimento, levado a cabo por um amplo conjunto de organizações e redes sociais; como uma ciência, que está sendo construída a partir de concepções, princípios e métodos diferenciados dos preceitos cartesiano-positivistas; e como uma prática vivenciada, experimentada, transmitida, inovada e (re)inventada por agricultores e agricultoras em diferentes condições e realidades por todo o território brasileiro, utilizando ou não essa denominação. No entanto, como nos mostram as reflexões contidas nos Capítulos 1 e 4, o entendimento da Agroecologia simultaneamente como ciência, movimento e prática permanece em debate com o ponto de vista de defesa da Agroecologia apenas como ciência, o que expressa um convite ao prosseguimento desse diálogo.
À luz da história rememorada no Capítulo 1, enfatiza-se que as reflexões realizadas, nas últimas duas décadas, sobre campesinato por diversos pensadores brasileiros vinculados aos movimentos sociais do campo, a própria constituição da Via Campesina no Brasil e o acúmulo de experiências protagonizadas por organizações de agricultores familiares camponeses fundamentadas nos princípios da Agroecologia, em todos os biomas brasileiros, têm levado a uma aproximação das percepções e dos discursos de organizações e movimentos sociais do campo no que se refere à Agroecologia. Nesse registro, cabe destacar a participação das organizações e dos movimentos de mulheres na construção social da Agroecologia. Em muitos contextos, tem sido constatado o seu papel na liderança de processos de Transição Agroecológica. Entretanto, permanecem os desafios para o enfrentamento das formas de subordinação e invisibilidade das mulheres agricultoras e agroextrativistas, sem o qual não se cumprirá o papel emancipatório da Agroecologia em sua dimensão política e cultural.
Ao mesmo tempo em que se ampliava o movimento agroecológico brasileiro e sua incidência nas políticas e programas públicos na última década, crescia o número de professores e pesquisadores compromissados com ou sensíveis à Agroecologia ocupando espaços nas instituições públicas de ensino e pesquisa, muitos dos quais oriundos da ou formados na interação da Agroecologia com a dinâmica social. Aos poucos, foram surgindo espaços para interações no meio acadêmico-científico, inicialmente, nos Seminários Estaduais e Internacionais de Agroecologia, realizados no Rio Grande do Sul desde 1999, e nos Congressos Brasileiros de Agroecologia (CBAs), iniciados em 2003, que culminaram com a criação da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) em 2004.
Os entendimentos e as percepções sobre Agroecologia no meio acadêmico-científico brasileiro são muito diversificados, o que se expressa nos trabalhos que são apresentados nos CBAs (que chega a sua oitava edição em 2013) e publicados na Revista Brasileira de Agroecologia, ambas as iniciativas lideradas pela ABA-Agroecologia. Entre esses trabalhos, encontram-se desde estudos pontuais desenvolvidos sob condições controladas, utilizando-se métodos convencionais cartesianos, até análises de agroecossistemas complexos realizadas a partir de métodos participativos inovadores que preconizam as interações entre os conhecimentos científicos e os saberes camponeses e tradicionais, referenciados na visão holística e na abordagem sistêmica. De toda forma, nesse caldo de diversidade, a Agroecologia vem se firmando no Brasil enquanto ciência em busca de técnicas, métodos e processos que contribuam para o estabelecimento/fortalecimento de estilos de agricultura sustentáveis.
Como fruto das reivindicações do movimento agroecológico brasileiro e da presença de gestores sensíveis à Agroecologia no governo federal a partir do início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, recursos para pesquisa, extensão e formação em Agroecologia passaram a ser disponibilizados, em várias oportunidades, por órgãos federais como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com aporte de recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (Sesu/MEC), via Programa de Apoio à Extensão Universitária (Proext); e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Da mesma forma, a expansão das universidades federais e dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia proporcionou condições para que fossem instituídos cursos formais de educação em Agroecologia.
Como decorrência dessas possibilidades e oportunidades, encontra-se, hoje no Brasil, mais de uma centena de grupos e núcleos de pesquisa e extensão vinculados a instituições de ensino e de pesquisa que utilizam o termo “Agroecologia” em sua denominação ou em suas linhas de ação e dezenas de cursos formais de educação em Agroecologia nos níveis técnico, tecnológico e de bacharelado, conforme apresentado no Capítulo 2 desta publicação. O desafio que está posto para aqueles que estão inseridos no meio acadêmico-científico é manter a coerência e a consistência dos princípios e fundamentos da Agroecologia e não cair na contradição de tornar a Agroecologia um nicho de atuação profissional, como tem acontecido historicamente com as profissões relacionadas às Ciências Agrárias. Uma formação profissional em Agroecologia, numa lógica de especialização técnica vinculada às Ciências Agrárias, por si só, já traz embutidas nuances de contradição.
Nas décadas de 1980 e 1990, nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, o pacote tecnológico da Revolução Verde incidiu mais intensamente sobre os sistemas de produção, inclusive sobre os da agricultura familiar camponesa. A forte presença do movimento agroecológico brasileiro, aliada às referências em Agroecologia vindas de Altieri e Gliessman, firmou uma concepção de transição para sistemas agroecológicos, partindo-se de sistemas convencionais, por meio das fases de racionalização no uso de insumos, substituição de insumos e redesenho dos agroecossistemas para sistemas mais complexos.
Campo de debate controvertido, o conceito de Transição Agroecológica baseado no esquema proposto por Gliessman (2000), para alguns autores (como se observou no Capítulo 4), é válido para diferentes cenários, incluindo áreas que ainda não tenham alcançado o status de agricultura moderna ou mesmo áreas que tenham sofrido pouca ou nenhuma ação antrópica. Já para os autores do Capítulo 1, aqueles passos não se ajustam tão bem aos sistemas de produção tradicionais (extrativistas, indígenas, etc.), presentes em especial na Amazônia. Esta é também a percepção dos autores deste Capítulo.
As condições edafoclimáticas presentes no território brasileiro, em sua maioria situado na faixa intertropical do planeta, mas com uma ampla variação de latitudes, longitudes e altitudes, propiciaram a conformação dos diversos biomas com suas variações e especificidades, que conferem ao Brasil um patrimônio ímpar de ecossistemas e de biodiversidades. Isso não expressa apenas a riqueza da fauna e da flora silvestres, mas, sobretudo, a magnitude da agrossociobiodiversidade associada a esses ambientes.
Desde os primórdios da ocupação do continente americano pelos seres humanos, os povos primitivos foram se estabelecendo nos diferentes ambientes do território brasileiro, interagindo com a biodiversidade e reconfigurando sua composição. Tomem-se como exemplos algumas espécies típicas dos biomas brasileiros, como a embaúba (Cecropia pachystachya) na Mata Atlântica, o pequi (Caryocar brasiliense Camb.) no Cerrado, o mandacaru (Cereus jamacaru) na Caatinga e a castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa H.B.K.) na Amazônia; suas presenças e dinâmicas nos diferentes locais em que ocorrem se devem, em grande medida, à seleção, à dispersão e ao manejo proporcionados pela ação humana.
A chegada das culturas europeias e africanas, a partir do século 16, imprimiu uma nova dinâmica de ocupação do território brasileiro. O processo de reocupação territorial ocorrido desde então, por meio de resistências, deserções, isolamentos, rebeldias e até mesmo por direcionamentos estatais, culminou na multiplicidade de povos indígenas, afrodescendentes e suas miscigenações (entre si e com as culturas europeias), que configuram a diversidade de povos e comunidades tradicionais e todas as expressões do campesinato brasileiro.
Em diálogo com os autores do Capítulo 3 e enfatizando suas análises, entende-se que cada povo ou comunidade tradicional estabelece com o ambiente em que habita relações peculiares de acordo com sua cultura e tradição. No entanto, é possível observar alguns aspectos comuns na lógica dessas relações, como a convivência e a adaptação às possibilidades e restrições do ambiente e a integração aos processos e ciclos naturais. São traços comuns a todos os povos e comunidades tradicionais a escolha e seleção de espécies para caça e coleta; a observação do comportamento de cada espécie e a interação com espécies em cada microambiente específico; o manejo e o cultivo das espécies da flora e fauna nativas ou das espécies introduzidas, de acordo com sua adaptação aos microambientes e com os momentos mais apropriados (fases da Lua, estações do ano, ritos); e as técnicas de produção, armazenamento e processamento dos alimentos e dos produtos para vestuário e ornamentação baseadas no saber fazer, nos costumes e na tradição.
A imbricada interação dos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais com os ciclos e processos naturais e todos os saberes associados tem intrínsecos aspectos e princípios que estão na essência da Agroecologia e são um convite para o estabelecimento das relações entre a abordagem agroecológica, a etnoecologia, a geografia ambiental e o manejo dos ecossistemas naturais ou etnoconservação. Nesse sentido, em se tratando de povos e comunidades tradicionais pouco ou nada impactadas pelo modelo tecnológico de uso dos insumos industriais, em vez de processos de Transição Agroecológica, é mais apropriado pensar em manutenção, fortalecimento, aprimoramento ou potencialização de sistemas baseados nos saberes tradicionais e em métodos que consigam incorporar esses saberes a processos de implantação e manejo de sistemas de produção agroecológicos. Um bom exemplo, ocorrido em 2007 e pioneiro no Brasil, é o registro do sistema agrícola tradicional do Rio Negro, que detém rica agrobiodiversidade (243 espécies cultivadas, sendo 73 variedades de mandioca) e reúne cerca de 23 etnias indígenas, como patrimônio cultural imaterial, o que mostra como os instrumentos e as políticas de salvaguarda podem ser utilizados em favor da agrobiodiversidade, da diversidade cultural e dos sistemas agrícolas locais (Decreto nº 3.551/2000). Nesse contexto, entende-se por sistema agrícola “o conjunto de saberes, mitos, relatos, práticas, produtos, artefatos e outras expressões que envolvem espaços manejados e plantas cultivadas, formas de transformação dos produtos agrícolas e sistemas alimentares locais, tendo como elemento estruturante a mandioca” (EMPERAIRE, 2010, p. 19).
Há, no País, um processo de expansão do reconhecimento das populações tradicionais, que têm se afirmado como sujeitos políticos. O termo “população tradicional”, antes restrito aos seringueiros e castanheiros da Amazônia, hoje abrange outros grupos que incluem os geraizeiros dos Cerrados, os coletores de berbigão de Santa Catarina, as quebradeiras de coco do Maranhão, as comunidades de fundo de pasto da Bahia, os apanhadores de flores sempre-vivas dos campos de altitude e os quilombolas em várias regiões, entre outros grupos. São caracterizados como:
[…] grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (por meios práticos e simbólicos) uma identidade pública que inclui algumas e não necessariamente todas as seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados. (CUNHA; ALMEIDA, 2001, p. 192).
Os povos e as comunidades tradicionais brasileiros têm sofrido pressões e expropriações territoriais de diversas formas, mas principalmente pela implantação de empreendimentos minerários, hidroelétricos e de produção de carvão e celulose (monocultivos de eucalipto e pínus) e pela criação de unidades de conservação de proteção integral fomentadas e/ou executadas pelo Estado. Com isso, todo o patrimônio da agrossociobiodiversidade sob domínio desses povos e comunidades e os saberes tradicionais a ele associados estão ameaçados. Da perspectiva agroecológica, é altamente estratégica e fundamental a luta, presente em todas as regiões do Brasil, pela manutenção ou retomada dos territórios tradicionais.
A partir da década de 2000, mesmo com a hegemonia econômica, política e ideológica do agronegócio no âmbito do governo federal, a presença de alguns gestores mais comprometidos/sensíveis à Agroecologia somada à organicidade e atuação do movimento agroecológico tem possibilitado/demandado uma participação intensa das organizações do campo agroecológico na elaboração e execução de programas e políticas públicas.
Um conjunto de leis e decretos foi instituído pela presidência da República como resultado de mobilização social, processos de articulação, amplos debates e formulações realizados pela sociedade civil e por representantes do governo federal no sentido de se estabelecerem políticas, planos e programas relacionados a temas afeitos ao campo agroecológico: Programa de Aquisição de Alimentos (Art. 19 da Lei nº 10.696/2003); Lei da Agricultura Familiar (Lei nº 11.326/2006), Lei de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006), Decreto da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº 6.040/2007), Lei da Política de Garantia de Preços Mínimos para Produtos da Sociobiodiversidade (Lei nº 11.775/2008), Lei da Alimentação Escolar (Lei nº 11.947/2009), Lei de Assistência Técnica e Extensão Rural (Lei nº 12.188/2010) e Decreto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO (Decreto nº 7.794/2012). O envolvimento do campo agroecológico com os programas e políticas públicas tem mostrado, de forma recorrente, apostas, frustrações, avanços e retrocessos, conforme as análises dos capítulos anteriores.
No entanto, é importante enfatizar que foi durante a execução dos programas públicos que se revelaram as maiores dificuldades e contradições. A maioria das organizações do campo agroecológico não tinha experiência na gestão de recursos públicos. A necessidade de seguir muitos procedimentos administrativos e burocráticos, conforme determina a legislação brasileira, impediu que muitas organizações acessassem os recursos públicos. As que conseguiram acessá-los de forma mais significativa tiveram que ampliar/estruturar os setores administrativos internos e prepará-los adequadamente. Mesmo com as modificações nas regras de repasse dos recursos públicos às organizações civis, proporcionadas pela Lei de Assistência Técnica e Extensão Rural (Lei nº 12.188/2010), em função do direcionamento dado às chamadas públicas pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário (Dater/MDA), somente as organizações mais bem estruturadas (em termos de pessoal técnico e de apoio administrativo) vêm conseguindo acessar tais recursos. Com isso, a maioria dos recursos destinados às chamadas públicas tem sido captada pelas instituições estatais de assistência técnica e extensão rural.
Não obstante esse avanço setorial na legislação, permanece a lacuna de um marco regulatório que assegure condições de acesso aos fundos públicos pelas organizações da sociedade civil, que as reconheça como atores de uma esfera pública ampliada e que, sem diminuir as responsabilidades do Estado na promoção de políticas públicas universais, assegure a participação e o controle social, indispensáveis à democracia. Esse é um desafio que permanece também para o campo agroecológico.
A instituição da PNAPO por meio do Decreto nº 7.794, assinado pela presidenta Dilma Rousseff em 20 de agosto de 2012, mesmo não atendendo a todas as expectativas do campo agroecológico, abre novas perspectivas. Os maiores desafios, doravante, estão na formulação e execução de planos e programas decorrentes da PNAPO em um cenário no qual crescem os conflitos pelos direitos territoriais que envolvem os povos indígenas e as comunidades tradicionais; mantém-se a luta pela democratização do acesso à terra e a demanda pela retomada da reforma agrária; intensifica-se a pressão junto ao governo para que crie um plano nacional de redução do uso de agrotóxicos e de combate à crescente liberação dos transgênicos; e aumenta a articulação contra a aprovação, no Congresso Nacional, de lei que libera o uso da tecnologia Terminator, mais conhecida como a tecnologia das sementes suicidas.
Na perspectiva da construção de sociedades sustentáveis, existem outras frentes ou movimentos brasileiros que confluem na mesma direção dos sonhos e utopias do movimento agroecológico: pela soberania e segurança alimentar e nutricional sustentável, por uma economia solidária, por terra e justiça ambiental, pelo direito à saúde, pela equidade nas relações de gênero e geração, dentre outros. As transformações necessárias requerem aproximações, interações e ações conjuntas entre essas frentes e movimentos. Um passo importante foi dado com a realização do Encontro Nacional de Diálogos e Convergências - Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo, em 20112, cujos objetivos eram fazer a denúncia pública dos impactos do modelo de desenvolvimento atualmente hegemônico no campo e apresentar, publicamente, as experiências e alternativas das redes como fundamento para uma proposta política de construção de um outro modelo de desenvolvimento e para propostas do movimento agroecológico visando ao fortalecimento da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais.
As redes e movimentos promotores deste Encontro reconheceram a ampliação de suas capacidades de expressão pública e ação política e a importância de um processo que se desdobrará em ambientes de diálogos e convergências que se organizarão a partir dos territórios, o lugar onde as lutas se integram na prática, conforme consta na Carta… (2011, p. 34).
Concluindo, acredita-se que as divergências que se observam quanto às concepções e estratégias relacionadas à Agroecologia significam pouco frente ao enorme desafio de superação do modelo hegemônico do agronegócio. Muitos passos já foram dados nesse sentido. O momento é de seguir em frente.
CARTA Política do Encontro Nacional de Diálogos e Convergências. 2011. Disponível em: <http://www.agroecologia.org.br/index.php/publicacoes/publicacoes-da-ana/publicacoes-da-ana/carta-politica-do-encontro-nacional-de-dialogos-e-convergencias/detail>. Acesso em: 10 set. 2013.
CUNHA, M. C.; ALMEIDA, M. W. B. Populações tradicionais e conservação ambiental. In: CAPOBIANCO, J. P. R. (Org.). Biodiversidade na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2001. p. 184-192.
EMPERAIRE, L. (Org.). Dossiê de Registro do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. Brasília, DF: ACIMRN: Iphan: IRD: Unicamp-CNPQ, 2010. 235 p.
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000. 658 p.
MORIN, E. O Futuro da humanidade: entrevista. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, ano 6, n. 65, dez., p. 14-15, 2012.
PLOEG, J. D. V. D. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2008. 372 p.