Foto: Eugenio Barbieri
Maria Jane Cruz de Melo Sereno
Paula Wiethölter
Tatiana de Freitas Terra
A domesticação das plantas tem um relacionamento direto de interação com o homem, pois é um processo que envolve mudanças mútuas entre os dois grupos. Essas mudanças determinaram uma dimensão diferente dentro da evolução dos vegetais, bem como despertaram a atenção de muitos autores ao longo dos anos, principalmente pela multidisciplinaridade do assunto (envolvendo antropologia, arqueologia, bioquímica, genética, geografia, linguística, biologia molecular, fisiologia, sociologia e botânica sistemática). Além disso, pode ser considerada como um dos processos mais importantes relacionados com a história dos seres humanos no planeta, por ter permitido ao homem a possibilidade de selecionar e, posteriormente, cultivar espécies para o seu próprio consumo. Sendo assim, a domesticação das espécies foi decisiva na mudança do comportamento humano e, dessa forma, pode ser considerada um pré-requisito para o surgimento das civilizações.
Vários conceitos já foram descritos para o termo domesticação, tais como: “um processo mediado por adaptações morfológicas e autoecológicas na planta e por mudanças no comportamento humano” (RINDOS, 1984); “um processo evolutivo operando sob a influência de atividades humanas” (HARLAN, 1992); “um processo de seleção genética que, por alterar traços chaves, transforma formas silvestres em variedades domesticadas” (SALAMINI et al., 2002), entre tantos outros. Entretanto, de maneira geral, pode-se dizer que a domesticação das espécies é um processo de modificação do genótipo de maneira contínua, evolutiva, efetuado inconscientemente pelo homem (EVANS, 1993) e de forma relativamente rápida. Nos últimos anos, foram desenvolvidos modelos matemáticos baseados em estimativas empíricas de coeficientes de seleção, os quais indicam que a domesticação de uma espécie não necessariamente necessita de centenas ou milhares de anos, e sim que pode ocorrer em torno de 20 a 100 anos (HILLMAN; DAVIES, 1990).
Diversos trabalhos têm identificado QTLs (Quantitative Traits Loci) associados com o processo de domesticação. No geral, os resultados encontrados indicam que as grandes mudanças observadas entre uma espécie silvestre e uma espécie domesticada correspondente são decorrentes de mudanças em poucos genes, ou seja, a ocorrência de seleção em poucos genes é suficiente para promover grandes mudanças (WRIGHT et al., 2005; HANCOCK, 2005). A fixação dessas mudanças de maneira relativamente rápida poderia ser explicada pela localização próxima dos QTLs associados com os caracteres da domesticação. Isso porque a proximidade dessas associações de genes poderia reduzir a quantidade de segregação entre esses genes importantes na adaptação (HANCOCK, 2005).
Contudo, pode-se definir que a domesticação das plantas é um processo evolutivo, constituído de inúmeras mudanças genéticas e morfológicas, que podem ser percebidas a partir de modificações comportamentais humanas, as quais estão diretamente relacionadas com o desenvolvimento da agricultura de subsistência (cultivo), efetuada, primariamente, pelo grupo dos caçadores-coletores.
Evans (1993) descreveu alguns conceitos relacionados ao cultivo, tais como: “o hábito de desenvolver plantas para próprio uso” (BRONSON, 1977 citado por EVANS, 1993); “o particular e persistente interesse por uma cultura”, implicando em maior envolvimento humano (HELBAEK, 1969 citado por EVANS, 1993). O autor conclui que a domesticação envolve aquelas modificações que conferem adaptação às condições da agricultura, distinguindo da adaptação a novos ambientes.
A domesticação tem o marco inicial na ação dos homens primitivos, os quais, inicialmente, eram considerados seres ignorantes e indolentes, mas que recentemente – em virtude de estudos arqueológicos – passaram a ser considerados como “profissionais primitivos”. Essa alteração na denominação dos ancestrais ocorreu por causa de uma série de considerações, tais como o grande número de ferramentas desenvolvidas, número de espécies coletadas (em torno de 2.500 espécies de plantas superiores), além do amplo conhecimento em relação ao ciclo de vida das plantas, como o florescimento, a frutificação e a colheita. A coleta das espécies, de maneira geral, não era realizada de qualquer maneira, e sim seguindo alguns critérios, tais como facilidade de coleta (sementes que apresentavam tamanhos maiores, mais grãos por espiga e inflorescência mais compacta) e de transporte (facilidade de debulha, considerando a disponibilidade para o estoque). Provavelmente, a coleta intensa de espécies, seguida por um manejo elementar, pode ter resultado na modificação de algumas populações, sugerindo, dessa forma, que a domesticação tenha precedido o cultivo. É importante destacar que os termos domesticação e cultivo não são sinônimos, já que a domesticação envolve mudança na resposta genética, transformando formas silvestres em domesticadas, enquanto o cultivo relaciona-se intimamente com a atividade humana de plantio e colheita, tanto na forma silvestre quanto na domesticada (SALAMINI et al., 2002). Além disso, a domesticação nem sempre evolui em relações agrícolas (RINDOS, 1984).
Existem diversos fatores que tentam explicar o que levou os caçadores-coletores a mudar o seu estilo de vida e, definitivamente, dar início à domesticação das espécies. Entre eles, estão as mudanças climáticas ocorridas no final do período Pleistoceno, as quais forçaram não somente a concentração de homens e animais em oásis, como também a existência de sincronia durante as mudanças climáticas e culturais e a evolução gradual, irregular e independente em diferentes ambientes (EVANS, 1993).
Rindos (1984) classificou o processo de domesticação em, pelo menos, três formas: incidental, especializado e agrícola. A domesticação incidental é resultado da seleção inconsciente de algumas plantas sobre outras, por causa do consumo humano (sociedade não agrícola). A interação coevolutiva com os humanos fez com que certos caracteres morfológicos de algumas plantas tivessem uma vantagem seletiva sobre os caracteres das outras plantas, por meio da pressão de seleção exercida com a atuação do homem. O resultado não é estabelecido por técnicas agrícolas especializadas, e as mudanças na morfologia são consideradas de baixo impacto. Além disso, a domesticação incidental é considerada como uma relação que preserva e promove uma relação conservativa e tradicional entre os humanos e o ambiente. Esse tipo de domesticação ocorre quando a agricultura fornece a forma primária de subsistência para uma sociedade.
A evolução das primeiras plantas domesticadas é determinada pela domesticação especializada e permite que diferentes tipos de interações de ambiente e pessoas sejam estabelecidos. Possivelmente, a fundamental novidade seja a mudança no comportamento do agente. O homem é o agente de dispersão das plantas, e as comunidades de plantas domesticadas eram estabelecidas em áreas onde as pessoas viviam. Esse fator também é determinante para que haja um padrão de sucessão entre as espécies que possuem o uso intensificado. Essas espécies domesticadas estão, dessa forma, sob ação de forças seletivas de grande importância evolutiva e apresentam mudanças morfológicas mais marcantes. Nesse tipo de domesticação, os humanos tornam-se suficientemente dependentes de determinadas plantas para a sua sobrevivência, assim como a sobrevivência de algumas plantas torna-se dependente dos humanos, em algumas regiões. Intensificando o sucesso desse relacionamento coevolutivo, um relacionamento especializado entre humanos e suas plantas domesticadas incidentais é criado, de forma que se estabeleça um sistema agroecológico primário. Nesse tipo de domesticação, a proteção, a armazenagem e o plantio tornam-se variáveis comportamentais fundamentais.
A domesticação agrícola é a consequência imediata do comportamento humano e da evolução dentro do sistema agroecológico. A manipulação ambiental humana (fogo, irrigação e sistemas de lavoura) auxiliou o estabelecimento da agroecologia, a qual formou um complexo onde as plantas daninhas começaram a se desenvolver. As plantas daninhas, também denominadas inços, agem como oportunistas e parasitam a interação existente entre os humanos e as espécies domesticadas coevoluídas. É importante ressaltar que a domesticação agrícola relaciona-se com o estabelecimento e o refinamento dos sistemas de produção agrícola, mas não resulta no fim dos outros dois modos de domesticação. Além disso, assim como na domesticação incidental, a domesticação agrícola é um processo que ainda está em andamento e apresenta como tendência atual o aumento da produtividade.
Em uma análise resumida, é possível inferir que a domesticação incidental seja uma consequência direta da alimentação humana. A domesticação especializada ocorre quando as pessoas afetam o ambiente de maneira tal que, indiretamente, beneficiam as plantas domesticadas. A seleção das características na planta, que permitem o desenvolvimento de um processo simbiótico entre humanos e plantas, confere o início do sistema agrícola de fato, estabelecendo a domesticação agrícola.
O processo de simbiose que se estabeleceu entre populações de plantas e animais, é facilitado pelo aparecimento de características adaptativas dentro da primeira população, bem como por modificações no comportamento da última. As plantas recebem pressão seletiva relacionada aos humanos e também ao ambiente. As mutações ocorridas nas plantas devem ser necessariamente “úteis” ao comportamento humano – modificado graças à competição – que acaba por excluir os tipos menos adaptados a esse relacionamento. Por fim, a domesticação afeta a planta em todas as fases do seu ciclo de vida (RINDOS, 1984).
No mundo todo, existem em torno de 200 mil espécies de plantas silvestres, das quais aproximadamente 100 produziram espécies domesticadas de grande importância econômica (DIAMOND, 2002). Segundo Evans (1993), a maioria das espécies domesticadas pertence a um pequeno número de famílias (2.489 espécies domesticadas pertencendo a somente 173 famílias). Além disso, a proporção de espécies domesticadas varia consideravelmente entre as famílias. Outro fator importante é que a grande parte das espécies está distribuída em oito famílias principais, que são: gramíneas (poáceas), leguminosas, rosáceas, solanáceas, asteráceas, mirtáceas, malváceas e cucurbitáceas. Dessa forma, com base nesses dados, surge uma pergunta: por que somente certas plantas foram domesticadas? As formas ancestrais das espécies cultivadas são denominadas “protótipos silvestres” e teriam sido domesticadas por se comportarem como espécies colonizadoras, ou seja, “inços ecológicos”, os quais são incapazes de competir num hábitat silvestre, porém adaptam-se bem em hábitats abertos, onde a competição é mínima. Entretanto, é importante ressaltar que o “protótipo silvestre” não pode ser o ancestral direto da espécie cultivada. Considera-se que espécies silvestres e espécies cultivadas evoluíram em paralelo, que hibridizam com frequência, apresentando introgressão de genes, porém com fluxo gênico limitado. Além disso, podem ser encontradas facilmente no mesmo ambiente. Um exemplo claro pode ser observado com o milho (Zea mays) e o ancestral teosinto (Zea mexicana). A espécie ancestral é encontrada na vegetação silvestre no oeste central do México (centro de origem da espécie) e também como invasora nos campos de milho (HAWKES, 1983).
O homem primitivo, ao alterar o hábitat em que vivia, propiciou a invasão de plantas que se adaptavam a esses novos ambientes. Com isso, surgiram as plantas invasoras ou inços, que, com a provável domesticação, deram origem às plantas cultivadas. Nesse novo sistema, surgiram os inços relacionados às cultivadas, ou seja, ancestrais ou descendentes das cultivadas geneticamente relacionados, formando o complexo silvestre–inço–cultivada, antes inexistente. Esses inços podem ter dado origem à planta cultivada ou podem ser derivados da hibridização entre a planta silvestre e a cultivada. O fluxo gênico, nesse complexo, até hoje influencia na introgressão de caracteres dos inços para as plantas cultivadas. O fluxo inverso (cultivada–inço) faz com que o último fixe caracteres de interesse ecológico, mas mantenha a debulha natural, que o permite sobreviver sem a interferência humana.
A síndrome da domesticação pode ser definida como o resultado do processo de domesticação das plantas, o qual resulta na modificação das características originais. Essas mudanças têm sido determinadas como as diferenças existentes entre plantas silvestres e domesticadas, sem ignorar muitos exemplos de espécies cultivadas que possuem características similares aos seus ancestrais silvestres e, muitas vezes, a perda total da ligação entre as duas populações. Darwin com sua teoria da “variação paralela análoga” e Vavilov com “as séries homólogas” reconheceram essas características comuns nos grupos domesticados de plantas e nas mudanças com a domesticação, apesar do último descrever a perda de ligação entre as plantas silvestres e as plantas cultivadas. Contudo, pode-se admitir que uma identificação das cultivadas modernas com seus ancestrais permanece plenamente possível, uma vez que o próprio Vavilov definiu que grande parte dessa perda encontrou um meio de retornar a seu relacionamento ancestral.
Amplamente listadas, as diferenças existentes nas plantas domesticadas em relação às silvestres são consideradas paralelas ao envolvimento humano com o seu cultivo. Isso deliberadamente é muito complexo, uma vez que a formação das sociedades envolve uma série de fatores, entre eles os padrões culturais. Entretanto, o cultivo de uma espécie em particular determina a domesticação como um importante processo evolutivo das plantas, ainda que este possa ter decorrido de seleção consciente ou inconsciente.
As principais características envolvidas com a síndrome da domesticação são descritas em Evans (1993) e estão resumidas a seguir:
1) Supressão do mecanismo de dispersão de sementes
A perda do mecanismo de dispersão natural das sementes dos cereais é determinada como a principal modificação entre as populações domesticadas e seus ancestrais silvestres. Mais surpreendente é o fato de o caráter ser controlado por um único ou por poucos genes – muitas vezes alelos recessivos. Um excelente exemplo é o caso do milho, que apresenta uma arquitetura de planta totalmente diferente do teosinto (provável ancestral), sob controle de apenas cinco locos distintos. No caso do arroz, a retenção das sementes tem sido encontrada sob controle de dois alelos recessivos.
Essa característica, adquirida após a domesticação, tornou as plantas cultivadas inteiramente dependentes do homem. Em algumas culturas, a perda desse mecanismo é irrelevante, permanecendo a forma original de dispersão das sementes. Algumas espécies de forrageiras cultivadas são bons exemplos, visto que a debulha natural é uma característica desejável para a manutenção das espécies sem a necessidade de nova semeadura.
2) Modificações de forma: alometria e condensação
Um exemplo clássico de mudança na forma por causa da domesticação é o grupo de hortaliças originado da couve silvestre (Brassica oleracea): brócolis, couve-flor e couve-de-bruxelas, entre outras. Dentro de uma única espécie, mudanças – nas folhas, raízes, inflorescências – originaram formas distintas por intermédio da seleção, entretanto existem pesquisadores que sugerem que diversas espécies silvestres tenham dado origem a diversas formas domesticadas.
A intensificação seletiva de alguns órgãos é geralmente resultado de uma modificação na alometria, com maior fracionamento de assimilados nos primeiros estádios de desenvolvimento daqueles órgãos. Um exemplo disso foi observado na beterraba, na qual o diâmetro do hipocótilo das plântulas funciona como um marcador eficiente para indicar o tamanho da raiz e sua produção.
O processo de condensação também foi referido, como o encurtamento de ramos e entrenós, levando órgãos muito dispersos a estruturas mais compactas. Exemplos extremos de condensação são observados na espiga do milho e na única inflorescência terminal nos girassóis. Em ambos, as formas silvestres possuíam pequenas inflorescências sobre muitos ramos. Dessa forma, o processo de condensação conduziu ao desenvolvimento de estruturas consideradas aberrantes no ambiente silvestre.
3) Germinação mais rápida e uniforme
Uma germinação mais demorada e a presença de sementes mais duras são características comuns e adaptativas das plantas silvestres, sendo indesejável para plantas cultivadas. Para Ladizinsky, citado por Evans (1993), a seleção para germinação mais rápida foi quase um pré-requisito para a domesticação de lentilhas, reduzindo a competição entre as plantas.
Por sua vez, a dormência pode ser um fator adaptativo na agricultura. Alguns cereais se desenvolvem sob condições de umidade e, nesse caso, certo grau de dormência entre as sementes é desejado, a fim de evitar perdas de grãos.
A germinação pode ser modificada por outros meios. Uma mudança vantajosa e essencial está no fato de as sementes de algumas espécies cultivadas não apresentarem necessidade de exposição à luz para sua germinação, diferentemente de seus ancestrais silvestres.
4) Sincronismo no florescimento e na maturação
A maturação, quando está condicionada a um longo período de tempo, pode ser uma vantagem para plantas silvestres, ao contrário das cultivadas, nas quais a uniformidade para maturação e florescimento, provavelmente, tenham sido intensificadas pela seleção humana indireta. Como exemplo, pode ser citada a sincronia de amadurecimento no arroz e de florescimento no trigo. A ausência de sincronismo em espécies do gênero Coix é um indicativo de domesticação parcial.
5) Mudanças bioquímicas (perda de substâncias amargas e tóxicas)
A proteção física de algumas espécies (por exemplo, em gramíneas) é um obstáculo que pode mais facilmente ser ultrapassado pelo homem, ao contrário da presença de compostos químicos, que reduzem drasticamente o potencial nutritivo de algumas culturas, bem como a utilização de suas sementes.
Inúmeras plantas silvestres apresentavam elementos tóxicos nos grãos, nos frutos e nas sementes, como proteção contra a predação, tornando necessário algum tipo de tratamento especial e/ou cozimento para alimentação humana. Embora apresentassem essas desvantagens, muitas delas eram reconhecidas como candidatas perfeitas à domesticação. É correto afirmar que a toxicidade evoluiu como um sistema de proteção para órgãos com grande estocagem nutritiva e pode ter sido intensificada por seleção inconsciente em muitas culturas.
6) Gigantismo de órgãos
O gigantismo de órgãos foi provocado por seleção de estruturas maiores e por eventos de poliploidização de algumas espécies. Desempenhando um papel significante junto às outras características concomitantes da domesticação, essa modificação em partes das plantas que recebem especial atenção na utilização humana pode ser determinada como um fator pré-adaptativo para o processo em si. O aumento no tamanho das sementes é um dos primeiros estágios de domesticação ocorrido em muitas leguminosas, assim como o aumento nos grãos dentro dos cereais ocorreu de maneira bem menos pronunciada. Vavilov (1945) identificou que o aumento no tamanho das sementes podia ser reflexo de adaptação ambiental, em vez de domesticação per se.
Diversas mudanças correlacionadas têm sido atribuídas a esse aumento nos órgãos principais das plantas em virtude da domesticação. Exemplos como o aumento no peso de grãos do trigo e o aumento da área foliar demonstram certo paralelismo. Muitas vezes, esse paralelismo é associado a distintos níveis de ploidia, entretanto existem evidências de que, no feijão, o tamanho celular e das sementes possa ser um evento estreitamente relacionado, sem denotar diferenças na ploidia.
Em muitos casos, como em cana-de-açúcar e no peso de sementes de ervilha, o tamanho das células e o número de células são importantes. Sendo assim, o diâmetro das células tem, presumivelmente, estado sob forte pressão de seleção, resultando em diferenças adaptativas entre as variedades crioulas, com alta herdabilidade para o caráter, mas pouco associado a diferenças nos níveis de ploidia. Uma grande proporção das plantas domesticadas é poliploide, como o trigo, a aveia, o algodão, o fumo, entre outras. O gigantismo ocasionado pela poliploidia certamente chamou a atenção do homem primitivo, que selecionou parte dessas plantas para a domesticação.
7) Ciclo de vida e sistemas de hibridação
O ciclo de vida de muitas espécies cultivadas tem sido reduzido de perene para anual durante a domesticação, embora muitos ancestrais silvestres tenham sido identificados como anuais. O gênero Gossypium é caracterizado por ser antigo e de arbustos perenes. As espécies cultivadas são do tipo anual e desenvolvidas sob domesticação. Isso permitiu que o algodão fosse cultivado além da zona temperada, onde anteriormente seu cultivo era restrito.
Uma generalização comum no processo de domesticação parece estar na troca da fecundação cruzada para autofecundação. Embora o milho, o centeio, o milheto, o sorgo, por exemplo, permaneçam com fecundação cruzada, parece haver uma relação positiva entre estabilidade na produção de frutos e sementes de plantas cultivadas, quando elas estão sob autofecundação (SMARTT, 1997). Esse sistema reprodutivo independe de outras plantas, ventos e insetos para sua sobrevivência. Esse caráter deve ter sido importante para as plantas e para o homem primitivo. Além disso, a retenção da fecundação cruzada desempenha um importante papel evolutivo em algumas espécies cultivadas, pois permite a elas a introgressão contínua com seus parentes silvestres.
Com a domesticação, é observada uma redução na esterilidade das flores, bem como um aumento da fertilidade e do conjunto de sementes, no caso dos grãos; entretanto, algumas espécies cultivadas com reprodução vegetativa têm levado a uma redução no florescimento e na esterilidade. Nesse caso, os programas de melhoramento vêm atuando em hibridizações com espécies relacionadas para aumentar a variabilidade genética desse pool gênico.
A história da agricultura é complexa porque não existem registros escritos sobre como e quando a agricultura começou. Tudo o que se sabe está baseado em evidências circunstanciais, em conclusões extraídas de registros arqueológicos. Segundo Hawkes (1983), a agricultura teve várias origens diferentes, mais ou menos no mesmo período, e nasceu, provavelmente, de uma necessidade dos povos de se fixarem em um local, deixando de ser nômades. O fato é que há milhares de anos, de maneira instintiva e, provavelmente, inconsciente, o homem primitivo passou a prestar mais atenção no que ocorria a sua volta e descobriu que não havia mais necessidade de mudar de ambiente para se alimentar, e que poderia passar a cultivar o alimento próximo a sua moradia, tornando-a, então, fixa. É interessante destacar que, por causa do compromisso com a caça e dos cuidados com o rebanho, é provável que boa parte da agricultura tenha sido desenvolvida pela mulher.
Existem algumas hipóteses que tentam explicar como a agricultura começou. Uma das hipóteses mais conhecidas e aceitáveis é a hipótese conhecida como “monte de lixo” (ENGELBRECHT, 1916 citado por HAWKES, 1983), a qual supõe que o homem primitivo, após chegar de sua coleta de alimento (sementes e raízes), descartava os restos ao redor de suas moradias, onde continuamente era depositado lixo. Esse lixo enriquecia o solo, permitindo que aquelas plantas, com características de inços, colonizassem, sem competição, as áreas próximas às moradias, as chamadas “cozinhas primitivas”. Esses locais, provavelmente, apresentavam estações bem definidas, favorecendo o desenvolvimento dos inços que ali eram depositados. Com isso, o homem teria percebido que não havia mais a necessidade de buscar o alimento tão longe, quando poderia cultivá-lo próximo às suas habitações. Segundo o autor, não teria ocorrido um planejamento, ou seja, foram as circunstâncias que levaram por si só ao inevitável desenvolvimento. Essa mesma hipótese também foi descrita mais tarde por Sauer (1952). Entretanto, alguns fatos não podem ser explicados por essa teoria. Entre eles, destaca-se a seguinte questão: por que somente um número tão baixo de espécies foi domesticado, considerando-se milhares de espécies de inços que, provavelmente, colonizaram as regiões próximas às moradias?
Além dessa teoria, muitas outras já foram desenvolvidas, como as descritas por Harlan (1992), que atribui o desenvolvimento da agricultura a causas divinas e religiosas, ao estresse causado pela pressão exercida pelo aumento populacional em determinados locais, e ainda a uma teoria sem modelo algum. Esta última sugere que algumas plantas possam ter sido domesticadas segundo uma teoria, enquanto outras seguiram outro modelo, não havendo, portanto, a existência de um modelo universal.
Existem evidências indicando que as plantas terrestres evoluíram em torno de 700 milhões de anos atrás (HECKMAN et al., 2001), que o período de habitação do homem no planeta é de 6 milhões de anos (DIAMOND, 2002) e que a agricultura teria iniciado em torno de 5 mil a 10 mil anos atrás (DIAMOND, 2002; ERICKSON et al., 2005). Diante desses fatores, surge uma questão: por que a agricultura foi desenvolvida tão tarde considerando a nossa história evolutiva? Várias hipóteses buscam desvendar essa incógnita. Segundo Sauer (1952), para o estabelecimento da agricultura, havia necessidade de uma forma de existência estável, fixa em determinado local, de modo que o homem pudesse desenvolver uma relação com as plantas que passaria a cultivar. Outra hipótese sugere que o fator decisivo para o desenvolvimento da agricultura teria sido uma dramática mudança climática (FLANNERY, 1973 citado por HAWKES, 1983) que teria resultado na fixação das comunidades em locais determinados, somados a mudanças na organização política e social. Entretanto, Hawkes (1983) apresenta citações discordando da ocorrência de mudanças ambientais de grande impacto para esse período. De fato, as verdadeiras causas que justificam o surgimento da agricultura em um período tão tardio na história cultural humana não estão ainda bem definidas, mas é provável que um dos fatores mais decisivos tenha sido a mudança na percepção e no comportamento humano.
A hipótese descrita por Engelbrecht (1916), citado por Hawkes (1983), apoia fortemente os chamados pré-requisitos para a origem da agricultura, que são:
1) Climáticos: necessidade de áreas com estações bem definidas.
2) Ecológicos: as espécies domesticadas eram inços, ou seja, espécies oportunistas e colonizadoras que facilmente se adaptaram ao ambiente próximo às moradias humanas, o qual foi alterado pelo homem (que fez do solo um ambiente altamente nutritivo e sem competição).
3) Taxonômicos: o número de famílias com espécies domesticadas é extremamente baixo, porém todas tinham características de inços.
4) Fisiológicas: as espécies domesticadas apresentam grandes quantidades de reserva (sementes, raízes e tubérculos), o que favorecia o homem primitivo, pois permitia a reserva de alimentos para a sobrevivência durante as longas estações de seca.
A agricultura pode ser dividida em duas fases distintas: a pré-agricultura e a agricultura de fato. A pré-agricultura pode ser dividida em três estágios (HAWKES, 1983), que são:
1) Colonização: caracterizado pela colonização de áreas abertas por plantas silvestres, com tendências a inços.
2) Colheita: caracterizado como um processo mais ordenado, baseado no conhecimento da planta. Nesse estágio, os grãos são colhidos regularmente em locais determinados e, provavelmente, com seleção de mutantes, visando ao aumento da produção e palatabilidade. Nesses dois primeiros estágios, os povos ainda não estocavam sementes para o ano seguinte.
3) Plantio: ocorrência de retenção das sementes, observando-se o período adequado para o plantio e com cuidados especiais em todos os estágios, até a colheita.
A agricultura de fato surgiu muito tempo depois, quando o homem já possuía um amplo conhecimento de suas plantas. Somente nessa fase, a cultura pode ser considerada domesticada e a agricultura estabelecida definitivamente.
De acordo com alguns registros arqueológicos, o início da agricultura teria surgido em diferentes locais, de maneiras e com cultivos diferentes. A agricultura de espécies cultivadas por sementes teria surgido em zonas montanhosas de regiões temperadas do Velho Mundo e no cinturão norte do Novo Mundo. Já a agricultura de tubérculos e raízes (vegecultura) teria surgido em terras baixas tropicais, com um período seco bem definido. Acredita-se que a vegecultura tenha sido um processo fundamental no início da agricultura e, dessa forma, teria surgido primeiro. Porém, Hawkes (1983) relata alguns trabalhos indicando que é mais provável que sementes, raízes e tubérculos tenham sido cultivados pelo homem primitivo mais ou menos no mesmo período, porém em locais distintos.
Estabelecer os locais de origem é uma das principais dificuldades relacionadas com a domesticação das plantas. Hawkes (1983) apresenta o conceito de De Candolle, de 1882, para o qual o centro de origem seria o local onde as plantas crescem na natureza. O principal desafio é definir o que realmente é a área de crescimento original (do silvestre) e o que pode vir a ser apenas um escape da espécie. Entretanto, a localização das espécies silvestres nem sempre é um bom critério de definição da origem das cultivadas. Um bom exemplo é o tomate, que apresenta várias espécies silvestres crescendo no Peru, porém existem evidências de que essa espécie, provavelmente, se originou no México. Em outros casos, ficou comprovado que as prováveis espécies ancestrais silvestres de uma cultivada não são sequer relacionadas a essa. Por exemplo, hoje se sabe que os candidatos a genitores das batatas cultivadas (indicados como provenientes do Chile, Uruguai e México) são espécies claramente distintas, até mesmo com números cromossômicos diferentes.
O botânico russo Nicolai Vavilov, em sua expedição entre 1920 e 1930, estudou a diversidade genética das plantas cultivadas ao redor do mundo, bem como de seus parentes silvestres. Em seus trabalhos, determinou que, durante a dispersão das espécies cultivadas a partir do seu local de origem, elas se dividiram em grupos morfológicos, ecológicos e geográficos. Além disso, também observou que, em certas áreas do mundo, havia maior diversidade de plantas cultivadas do que em outras, concluindo que os centros de diversidade genética correspondem aos centros de origem das cultivadas. Sua proposta inicial foi de cinco centros (HAWKES, 1983). Alguns anos depois, foram adicionados três centros e três subcentros ou centros secundários (1935 e 1951): 1) Centro chinês; 2) Centro indiano; 3) Centro asiático central; 4) Centro asiático menor; 5) Centro Mediterrâneo; 6) Centro Etiópia; 7) Centro América Central; 8a) Centro América do Sul (peruano–boliviano–equatoriano); 8b) Centro América do Sul (Chiloé); 8c) Centro América do Sul (brasileiro–paraguaio). Sendo assim, a partir desses estudos, Vavilov propôs a formação de oito centros de origem das plantas cultivadas e utilizou a denominação de centros secundários para descrever alguns casos em que o centro de diversidade da cultura não correspondesse ao seu centro de origem. Entretanto, uma das mais sérias críticas à teoria de Vavilov foi feita por Harlan (1971), que sugere apenas três centros verdadeiros, os quais estão relativamente conectados um ao outro por áreas difusas que não são centros. O autor reconhece que algumas culturas são endêmicas de uma pequena área, outras são monocêntricas e outras, oligocêntricas. Sugere ainda que certas espécies cultivadas são não cêntricas, ou seja, apresentam seus ancestrais dispersos.
Em 1926, Vavilov reconheceu que os centros de diversidade botânica nem sempre correspondem aos centros de origem das espécies. Entretanto, Zohary (1969), citado por Hawkes (1983), destacou que a maioria das publicações de Vavilov se refere aos centros de diversidade como sinônimos de centros de origem, salientando que generalizações são inadequadas, uma vez que cada entidade biológica acumula variações em diferentes taxas e em diferentes locais. As taxas de mutação podem ser mais ou menos constantes, mas as pressões de seleção diferem enormemente de local para local.
Para esclarecer as dúvidas relacionadas aos centros de origem da agricultura e às áreas de evolução e de diversidade, foram definidos alguns conceitos (HAWKES,1983):
1) Centros nucleares: locais onde a agricultura iniciou.
2) Regiões de diversidade: áreas nas quais as plantas domesticadas se espalharam a partir dos centros nucleares e onde outras culturas surgiram, tanto por seleção consciente quanto inconsciente. São equivalentes aos centros de Vavilov.
3) Centros secundários: locais onde poucas cultivadas tiveram origem, não mais que uma ou duas. Exemplos: Nova Guiné (cana-de-açúcar), Brasil (mandioca e abacaxi) e Estados Unidos (girassol).
Por muitos anos, as pesquisas relacionadas com as plantas domesticadas visaram, basicamente, melhorar as espécies que o homem primitivo domesticou. Poucos esforços foram destinados à domesticação de novas espécies. O homem moderno ainda está utilizando o “pacote” domesticado e selecionado pelos seus ancestrais primitivos. Entretanto, considerando as 200 mil espécies silvestres existentes (DIAMOND, 2002), certamente ainda existem inúmeras espécies silvestres com alto valor nutritivo para serem domesticadas e utilizadas na alimentação humana e animal.
Os mistérios envolvidos com a domesticação das espécies de maior impacto na agricultura ainda não foram completamente compreendidos; portanto, a domesticação de outras espécies ainda não pode ser concretizada. Sendo assim, uma das principais metas para o futuro é identificar as verdadeiras dificuldades encontradas durante a domesticação das espécies silvestres que produziram as espécies domesticadas mais importantes e utilizar a ciência moderna para vencer as dificuldades encontradas até hoje (DIAMOND, 2002).
Diversas metodologias já foram determinadas para estudos de domesticação de plantas cultivadas. Entre elas, destacam-se, como as mais importantes, os marcadores moleculares, análises de distância genética, filogenia, citologia e análises mendelianas (incluindo estudos de QTL), conforme descrito por Salamini et al. (2002).
De qualquer maneira, o fato é que o homem primitivo influenciou de forma significativa o relacionamento entre as espécies, o que propiciou o surgimento das populações de inços e de plantas cultivadas e, de certa forma, incrementou a variabilidade. O homem moderno recebeu esse “pacote” domesticado e diminuiu drasticamente a variabilidade genética com o uso de técnicas cada vez mais refinadas, visando aumentar a produtividade das espécies cultivadas. Assim, cabe ao homem moderno, a responsabilidade de conservar os recursos genéticos modificados por seus ancestrais, com o objetivo de garantir a sobrevivência de sua espécie.
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