Foto: Rosa Lía Barbieri
Rosa Lía Barbieri
Raquel Silviana Neitzke
A palavra pimenta é usada indistintamente para designar o condimento picante, derivado de vários tipos de plantas, que pertencem a diferentes famílias e têm origens muito diversas. Isso, invariavelmente, é fonte de confusões que são desfeitas quando se menciona o nome científico da planta a que se quer referir ou, então, a família botânica a que pertence.
Entre tantas plantas conhecidas como pimentas, estão presentes as do gênero Capsicum (família Solanaceae), que possuem como traço marcante a presença de capsaicina, responsável por sua pungência característica. Pimenta vermelha, pimenta-de-cheiro e a que, atualmente, é conhecida como pimenta-malagueta, entre muitos outros nomes populares, são os frutos de arbustos de várias espécies desse gênero. Originárias das Américas, essas pimentas se tornaram mundialmente conhecidas após as viagens de Cristóvão Colombo a esse continente, no século 15.
A pimenta-do-reino, conhecida também como pimenta-preta ou pimenta-branca, é o fruto de Piper nigrum L. (família Piperaceae), uma espécie trepadeira nativa da Ásia. Muito valorizada na Antiguidade pelos indianos e egípcios, foi alvo de intenso comércio envolvendo árabes e europeus, que iam até a Índia, por terra ou por mar, para buscá-la. Chegou a ser vendida a peso de ouro na Europa, na época das grandes navegações promovidas por Portugal e Espanha.
Os grãos-do-paraíso, também chamados de malagueta, são frutos de uma espécie africana, Aframomum melegueta K. Schum. (família Zingiberaceae). Essa espécie era conhecida pelos povos escravizados que foram trazidos para o Brasil a partir do século 16. Esses povos, ao chegarem aqui, conheceram pimentas do gênero Capsicum e, por associação, passaram a chamá-las também de malagueta. O folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo escreveu:
A nossa malagueta é uma solanácea, e a malagueta africana, derrotada pela brasileira, é uma zingiberácea. Bem diversas, não é verdade? Mas a pimenta conterrânea alega usucapião de quatro séculos (CASCUDO, 2004).
A pimenta-rosa, fruto da espécie arbórea Schinus terebinthifolius Raddi (família Anacardiaceaea), usada há muito menos tempo na gastronomia, é nativa da América tropical. Nos Estados Unidos, foi introduzida e se tornou invasora. Embora ocorra no Brasil, o seu uso na culinária não é tão comum.
No Cerrado brasileiro, há uma espécie arbórea conhecida como pimenta-de-macaco, cujas sementes são escuras e rugosas. Também conhecida como pimenta-de-negro, Xylopia aromatica (Lam.) Mart. pertence à família Annonaceae. É usada na culinária regional, e pouco conhecida fora do seu local de origem.
As plantas de Capsicum são arbustos perenes, apesar de serem geralmente cultivadas como plantas herbáceas anuais nas zonas temperadas. A propagação é feita por sementes (HEISER JUNIOR, 1995).
A capsaicina, que confere a pungência aos frutos, é produzida por células glandulares especializadas, localizadas na placenta, além de ser composta por vários alcaloides, cuja quantidade varia de acordo com o tipo de pimenta. Para medir os níveis de “calor” provocados pela pimenta, Wilbur Scoville desenvolveu, em 1912, uma escala amplamente utilizada de avaliação da pungência. De acordo com Bellringer (2001), citado por Borges (2001), no teste original um grupo de voluntários deveria determinar em qual diluição uma solução de determinada pimenta começaria a causar sensação de queima ou ardência na língua. Aproximadamente uma parte por milhão de “calor” é equivalente a 1,5 unidade Scoville. O teste original de Scoville foi substituído por medidas da pungência realizadas por meio de High Performance Liquid Chromatography (HPLC). Até recentemente, a pimenta mais “quente” registrada era a habanero (C. chinense Jacq.), com 577 mil unidades Scoville, em contraste com a pimenta jalapeño (C. annuum L.), que tem entre 2.500 e 10.000 unidades Scoville, e com o pimentão, que tem pungência de zero unidade Scoville. No entanto, em 2000, foi identificada, na Índia, uma variedade de C. frutescens com 855 mil unidades Scoville, o que arrebatou o posto de pimenta mais pungente do mundo, que antes era da pimenta habanero (LINGUANOTTO NETO, 2004). Reifschneider (2000) apresenta a pungência de algumas variedades brasileiras: a pimenta-de-cheiro (C. chinense) tem pungência considerada média, de 47.180 unidades Scoville, a pimenta-de-bode (C. chinense) tem pungência alta, de 105.500, enquanto a pimenta-malagueta (C. frutescens L.) tem pungência muito alta, de 156.730 unidades Scoville.
As sensações de calor e de ardência na boca, causadas pelo consumo de pimenta, são o resultado de estimulação de receptores locais pela capsaicina, que, por sua vez, pode também auxiliar na mediação da dor: uma aplicação prolongada de capsaicina diminui a sensibilidade dos neurônios sensoriais responsáveis pela dor. A capsaicina também estimula a produção de suor, razão pela qual as pimentas são mais populares em climas secos e quentes. Além disso, estimula a ação dos músculos do estômago e do intestino, melhorando a digestão (BORGES, 2001).
As aves não sentem a pungência e se alimentam fartamente dos frutos. As sementes passam através de seu trato digestivo e são disseminadas, a ponto de, na África, terem se tornado subespontâneas (BOSLAND; VOTAVA, 2000). Em Turuçu, um município gaúcho que produz pimenta calabresa a partir dos frutos de pimenta-dedo-de-moça (Capsicum baccatum L.), os agricultores costumam secar os frutos, depois de moê-los, sobre terraços de cimento. É comum observar galinhas se alimentando calmamente da pimenta posta a secar, e também a presença de quero-queros e de outras aves silvestres ciscando no meio das pimentas e delas se alimentando.
Uma explicação evolutiva para a pungência das pimentas é a possibilidade de a capsaicina ter sido desenvolvida pelas plantas como uma forma de evitar seu consumo pelos animais cujo sistema digestivo poderia destruir as sementes da pimenta, como os mamíferos, e, ao mesmo tempo, permitir seu consumo por animais dispersores das sementes, como os pássaros (BORGES, 2001).
Os frutos de pimenta podem ser consumidos frescos ou desidratados, como condimento. Pelo volume de produção, os produtos obtidos das pimentas do gênero Capsicum, pungentes ou não pungentes, representam uma das mais importantes commodities de condimentos no mundo. Eles adicionam sabor e cor aos alimentos, ao mesmo tempo em que fornecem vitaminas e minerais essenciais. Há uma ampla variedade de produtos que contêm pimenta, entre os quais alimentos étnicos, pratos à base de carnes, molhos para salada, maioneses, derivados de leite, bebidas, doces e molhos picantes. Extratos de pimenta são usados em produtos cosméticos e farmacêuticos. Além do uso na alimentação, como condimento e medicinal, as pimentas também têm uso ornamental quando cultivadas em jardins ou em vasos (BOSLAND; VOTAVA, 2000). De acordo com Andrews (1984), citado por Borges (2001), além de usá-las como condimento na alimentação, os povos pré-colombianos as utilizavam para fins medicinais, e, de certa forma, para punir as crianças (por meio da inalação da fumaça resultante da queima de frutos picantes) e, ainda, como arma de guerra. Ainda hoje a pimenta é usada como artefato bélico, e a capsaicina é o principal elemento utilizado no spray de pimenta, que, ao ser acionado, libera um gás com alta concentração de capsaicina, o qual provoca fortes reações nas pessoas atingidas e causa irritação nas mucosas dos olhos, da boca e nas vias aéreas superiores. Esse spray é bastante utilizado em defesa pessoal, e por policiais e militares na contenção de tumultos e distúrbios civis.
Os frutos são boas fontes de vitaminas, particularmente de ácido ascórbico – nos tipos doces, consumidos crus – e de vitamina A – nos tipos pungentes secos – (HEISER JUNIOR, 1995). A vitamina E também está presente em altas concentrações em vários tipos de pimenta. Com ação antioxidante, esses compostos atuam na proteção contra o câncer. O consumo de pimentas estimula o fluxo de saliva e a produção de sucos gástricos, auxiliando assim a digestão. De acordo com o conhecimento popular, as pimentas aumentam a temperatura corporal, aliviam dores, estimulam a digestão, melhoram a aparência da pele, fazem passar a embriaguez, curam a ressaca e aumentam a paixão (BOSLAND; VOTAVA, 2000).
As pimentas são amplamente usadas na medicina natural. Cremes analgésicos produzidos à base de capsaicina são usados para aliviar dores musculares. Um popular emplastro (curativo poroso em tecido de algodão perfurado, tingido e engomado, recoberto em uma das faces com adesivo e usado para alívio das dores reumáticas, nevrálgicas e musculares), usado desde há muitos anos, tem como ingrediente ativo o pó de pimenta vermelha. Reifschneider (2000) relata que, no interior do Brasil, cataplasmas de pimenta eram aplicados com o objetivo de recobrar os sentidos dos enfermos.
Câmara Cascudo, em seu livro História da alimentação no Brasil, ressalta que:
[…] o condimento incomparável para o brasileiro é a pimenta, a pimentinha, companheira sem rival, transformando o peixe cozido em obra-prima, ressaltando os valores sápidos de todas as iguarias, aceleradora digestiva, masculinizando o sabor.
Cita, ainda, uma frase de Jean Baptiste Debret, pintor e escritor francês que esteve no Brasil no início do século 19: “A malagueta esmagada simplesmente no vinagre, é o prato permanente e de rigor para o brasileiro de todas as classes” (CASCUDO, 2004).
Alexander von Humboldt, um botânico que percorreu o Brasil no início do século 19, observou que “as pimentas eram tão necessariamente indispensáveis para os nativos como o sal para os brancos” (REIFSCHNEIDER, 2000).
O gênero Capsicum abrange cerca de 25 a 30 espécies, 5 das quais são domesticadas: C. annuum, C. baccatum, C. frutescens, C. chinense e C. pubescens Ruiz & Pav. (HEISER JUNIOR, 1995). As diferentes espécies e variedades de pimentas podem ser discriminadas por características morfológicas, visualizadas nas flores, principalmente, e também nos frutos (CARVALHO et al., 2003).
A espécie mais amplamente cultivada, e de maior importância econômica atualmente, é C. annuum. Inclui as pimentas doces e a maior parte das pimentas que são secadas para preparar pimenta em pó e páprica. As formas domesticadas são classificadas como C. annuum var. annuum e as silvestres como C. annuum var. glabriusculum. Esta última ocorre desde o sul dos Estados Unidos até o norte da América do Sul. Várias evidências indicam que a domesticação ocorreu inicialmente na América Central (HEISER JUNIOR, 1995). A espécie se caracteriza por possuir anteras azuladas ou violetas, e corolas brancas, e por apresentar geralmente uma flor por nó reprodutivo (CARVALHO et al., 2003). É a espécie de Capsicum que apresenta a mais ampla variação de tamanho, cor e formato de frutos (HERNÁNDEZ-VERDUGO et al., 2001), o que explica tantos tipos conhecidos de pimenta como jalapeño, serrano, pimenta-doce, cayenne, cereja e, ainda, algumas variedades ornamentais.
C. baccatum é pouco cultivado fora da América do Sul. As formas cultivadas são classificadas como C. baccatum var. pendulum, e as formas silvestres, como C. baccatum var. baccatum. A variedade silvestre está confinada à Bolívia e arredores, e é provável que o seu cultivo tenha se iniciado em algum ponto dessa área. Essa espécie é facilmente identificável por causa das manchas amareladas ou esverdeadas presentes na corola (HEISER JUNIOR, 1995). C. baccatum possui grande variedade de tipos de frutos, dos quais os mais conhecidos são: dedo-de-moça ou pimenta vermelha, chapéu-de-frade, cambuci e cumari.
C. frutescens tem ampla distribuição como planta silvestre, invasora ou semidomesticada, nas terras baixas da América tropical e, secundariamente, no sudeste da Ásia. A cultivar Tabasco é o único membro dessa espécie comumente cultivado fora dos trópicos. A espécie é caracterizada por apresentar corolas branco-esverdeadas, com duas ou mais flores por nó reprodutivo (HEISER JUNIOR,1995). Os frutos são pequenos e cônicos (de 2 cm a 3 cm de comprimento) e extremamente pungentes (VAUGHAN; GEISSLER, 1997). No Brasil, uma das pimentas mais conhecidas e produzidas é a malagueta, muito cultivada na Zona da Mata Mineira (CARVALHO et al., 2003), destinada tanto para consumo in natura quanto para a fabricação de molhos e de conservas. Mundialmente famoso, o molho Tabasco, cuja patente foi registrada nos Estados Unidos em 1870, é feito com pimentas dessa espécie, que são maceradas, salgadas e fermentadas em barris, nos quais permanecem por até 3 anos. Depois disso, sua massa é drenada e temperada. Em virtude do grande crescimento do consumo desse produto, há plantações de tabasco no México, na Colômbia e no Brasil, especificamente no Estado do Ceará (LINGUANOTTO NETO, 2004).
Amplamente distribuída na América tropical, C. chinense é a espécie mais cultivada na Região Amazônica. Apresenta duas ou mais flores por nó reprodutivo e se diferencia de C. frutescens pela presença de uma constrição anelar presente no cálice dos frutos (CARVALHO et al., 2003). Em termos evolutivos, C. chinense e C. frutescens são muito próximas (HEISER JUNIOR, 1995). Os frutos de C. chinense têm aroma característico, que é muito diferente daquele das demais espécies de pimenta domesticada. Os tipos de pimenta mais conhecidos dessa espécie são habanero, pimenta-de-cheiro, murupi, pimenta-de-bico, pimenta-de-bode e cumari-do-pará.
C. pubescens, conhecido como “rocoto”, é uma espécie típica de altitudes e ocorre nos Andes. Também é cultivada em poucos locais com elevada altitude no México e na América Central, mas sua entrada pode ter sido posterior a Colombo. É a única espécie domesticada do gênero, em que não há registros de cultivo no Brasil. Não é conhecida nenhuma forma ancestral silvestre, mas C. pubescens mostra afinidades com as seguintes espécies silvestres da América do Sul: C. eximium Hunz., C. cardenasii Heiser & P. G. Sm. e C. tovari Eshbaugh, Smith & Nickrent. Capsicum pubescens é morfologicamente a mais distinta das espécies cultivadas, em virtude de diversas características, entre as quais estão incluídas as sementes escuras e enrugadas (as outras espécie têm sementes cor de palha, mais ou menos lisas), corolas púrpuras e folhas rugosas (HEISER JUNIOR, 1995).
As espécies semidomesticadas e silvestres estão restritas à região andina e à região litorânea brasileira. O maior número de espécies está no Brasil, principalmente na Região Sudeste e nas regiões da Mata Atlântica (REIFSCHNEIDER, 2000). Bianchetti (1996), explorando a morfologia e a ecologia das espécies brasileiras, indicou resultados distintos daqueles encontrados para espécies andinas. A maioria das espécies andinas vegeta em ambientes abertos e secos; apresenta frutos eretos, ovalados, vermelhos, com sementes claras e dispersadas por pássaros; em contraste com a maioria das espécies brasileiras que ocorre em ambientes fechados e úmidos, tem frutos pendentes, globosos, verde-amarelados, sementes escuras e, provavelmente, não é dispersa por pássaros, e sim por outro dispersor (BIANCHETTI; CARVALHO, 2005). Resultados como esses sugerem que as espécies silvestres brasileiras não só são muito diferentes das andinas como também não apresentam qualquer indicativo que permita o estabelecimento de relação próxima de ancestralidade (REIFSCHNEIDER, 2000).
Quase todas as espécies são diploides, com 2n=2x=24. Em C. annuum, são conhecidas formas tetraploides e hexaploides. É possível obter híbridos interespecíficos de C. baccatum, C. annuum, C. frutescens e C. chinense em todas as combinações, os quais mostram graus variados de fertilidade. C. pubescens parece ser bem isolado geneticamente das outras espécies cultivadas, apesar de híbridos terem sido assegurados com C. frutescens, por meio de cultura de embriões (PICKERSGILL, 1988 citado por HEISER JUNIOR, 1995). Foram produzidos vários híbridos entre espécies silvestres e cultivadas. Todas as espécies cultivadas são autocompatíveis, e a autofecundação parece ser a regra geral. Todavia, a polinização cruzada pode ser facilitada tanto por alterações na morfologia da flor como pela presença de insetos polinizadores (REIFSCHNEIDER, 2000). Algumas espécies silvestres, no entanto, têm sido descritas como autoincompatíveis, e outras têm longos estiletes que promovem a fecundação cruzada. As aves são, provavelmente, os principais agentes dispersores de sementes das espécies silvestres (HEISER JUNIOR, 1995). Isso ocorre também com algumas pimentas semidomesticadas, como é o caso de Capsicum baccatum var. baccatum, que recebe a denominação popular de pimenta-de-passarinho, por causa da observação popular desse modo de dispersão.
Antes da chegada de Colombo às Américas, pimentas do gênero Capsicum eram amplamente usadas nas Américas Central e do Sul, na área do Caribe e no México. Os registros mais antigos do cultivo de pimenta são encontrados em sítios arqueológicos localizados em Tehuacán, no México, e datam de cerca de 9 mil anos. Outros registros arqueológicos, datados de 2500 a.C., foram encontrados em Ancon e Huaca Prieta, no Peru (REIFSCHNEIDER, 2000). Microfósseis de amido derivados de frutos de pimenta, datando desde 6 mil anos atrás até o período de contato com os colonizadores europeus, foram avaliados por Perry et al. (2007). As associações de grãos de amido encontradas em sete locais distintos, compreendidos entre as Bahamas e o sul do Peru, demonstraram que o cultivo de milho e de pimenta ocorria consorciado e formava um complexo alimentar antigo e amplamente disseminado nos neotrópicos (região que compreende desde o sul dos Estados Unidos até a região central da Argentina e do Chile), antecedendo até mesmo o desenvolvimento da cerâmica em algumas regiões.
Para Heiser Junior (1995), o cultivo de Capsicum se iniciou de forma independente em diversas áreas, tendo como base diferentes espécies silvestres. Conforme Eshbaugh (1993) e Pickersgill (1984), citados por Perry et al. (2007), uma combinação de evidências arqueológicas, de análises genéticas e de distribuição moderna das plantas leva a crer que C. annuum tenha sido domesticado inicialmente no México ou no norte da América Central; C. frutescens, no Caribe; C. baccatum, nas planícies da Bolívia; C. chinense, nos planaltos do norte da Amazônia; e C. pubescens, em locais de altitudes médias do sul dos Andes.
O complexo C. annuum–C. chinense–C. frutescens foi domesticado pelo menos duas vezes, de forma independente (HARLAN, 1992). A domesticação resultou em mudanças, particularmente, nos frutos. Os frutos vermelhos, pequenos, eretos e decíduos, do tipo silvestre, foram substituídos por frutos maiores, geralmente pendentes, não decíduos e com uma ampla variedade de cores além da vermelha. Tipos doces também eram conhecidos, mas apenas recentemente eles assumiram maior importância. Aparentemente, a domesticação resultou também em uma mudança no modo de reprodução, passando de fecundação cruzada para autofecundação (HEISER JUNIOR, 1995).
No Brasil, na época da chegada dos europeus, o cultivo de pimentas era prática comum entre os indígenas. Diferentes tipos eram cultivados, e é possível supor que as diversas tribos cultivavam, colhiam os frutos e realizavam a sua própria seleção das pimentas (RUFINO; PENTEADO, 2006).
Interessantes relatos sobre as pimentas cultivadas pelos índios no Brasil, no século 16, foram feitos pelo alemão Hans Staden. Após o naufrágio do navio em que viajava, foi aprisionado pelos índios brasileiros no litoral fluminense, vivendo entre os tupinambás de 1547 a 1555. Relatou suas aventuras e o dia a dia dos indígenas com os quais conviveu, em um livro publicado na Alemanha em 1557. Descreveu as pimentas “que os selvagens plantam para comer”, uma amarela e outra vermelha, comparando seus frutos, quando verdes, aos frutos da roseira de espinhos. Os índios as colhiam quando maduras e as secavam ao sol. Registrou também a maneira pela qual usavam as pimentas com fins bélicos: para expulsar os inimigos, faziam grandes fogueiras e, quando o vento soprava, colocavam ali grandes porções de pimenta. A fumaça produzida atingia as cabanas e obrigava os adversários a fugirem. Seus relatos descrevem o comércio dos índios com os franceses, cujos navios aportavam na costa brasileira em busca de produtos locais. Além do cobiçado pau-brasil, os franceses levavam pimentas, macacos e papagaios, dando, em troca, facas, machados, pentes, guizos, anzóis, “pano ordinário” e espelhos para os índios (STADEN, 1930).
As pimentas eram plantas muito valorizadas entre os indígenas, geralmente ficando em segundo lugar apenas quando comparadas aos principais produtos: o milho e a mandioca. Desempenhavam também um importante papel nas cerimônias religiosas e nos mitos (HEISER JUNIOR, 1995). Frutos de Capsicum eram usados pelos astecas para condimentar uma bebida à base de sementes de cacau, o tchocoatl, precursor do chocolate (LINGUANOTTO NETO, 2004).
Quando retornou de sua primeira viagem às Américas, em 1492, Colombo levou esse tipo de pimenta para a Europa. Lá ela se disseminou rapidamente para a África e para a Ásia, através das rotas de comércio dos portugueses e espanhóis. Como condimento, gradualmente se tornou mais importante do que a pimenta-do-reino (Piper nigrum) no Oriente, o que consistiu numa grande mudança no mercado (VAUGHAN; GEISSLER, 1997).
Os incas chamavam essas plantas de aji, mas os colonizadores espanhóis acharam que os frutos tinham um efeito muito parecido com o da pimenta-do-reino, por isso mudaram o nome de aji para pimientas. Mais tarde, a pimenta passou a ser conhecida na Europa também como chili, seu nome asteca (HAYS; HAYS, 1973).
O primeiro registro das pimentas, feito pelos europeus, aparece em uma carta escrita por Pedro Martir, em 1493, na qual ele relatou que Cristóvão Colombo encontrou uma planta, de cujos frutos os nativos faziam grande consumo, que era picante como a pimenta do Cáucaso (Piper nigrum) (HEISER JUNIOR, 1995). Na Europa, inicialmente o primeiro impacto que as plantas causaram foi pela estética de seus frutos: as pessoas se encantaram com as cores e os formatos e passaram a cultivar Capsicum como planta ornamental. Após poucas décadas, no entanto, a utilidade dos frutos na culinária foi reconhecida, e seu cultivo se disseminou pela região mediterrânea (SWAHN, 1997). As “novas” pimentas se disseminaram muito rapidamente através das rotas de especiarias da Europa para a África, a Índia, a China e o Japão. O novo condimento, diferentemente do que aconteceu com a maior parte das plantas introduzidas das Américas, foi incorporado quase que instantaneamente na culinária de diversos países da Europa, da África e da Ásia (BOSLAND; VOTAVA, 2000). Mesmo no Oriente, a terra das especiarias, onde parecia difícil ser aceita nova substância picante, Capsicum atingiu uma grande difusão. Era chamada de “pimenta dos pobres”, por ser incomparavelmente mais barata e ter o sabor ardente e picante que se assemelhava ao da pimenta-do-reino (FERRÃO, 1993).
Na Hungria, com Capsicum annuum foi desenvolvida a páprica, um pó de sabor ligeiramente acre, que se emprega como condimento feito a partir de pimentão. A páprica foi fundamental para a descoberta do ácido ascórbico, a vitamina C, o que conferiu o Prêmio Nobel ao cientista húngaro Albert von Szent-Györgyi, em 1937 (BOSLAND; VOTAVA, 2000).
Há alguns casos curiosos que ilustram como a pimenta das Américas foi incorporada à cultura de povos de outras partes do mundo. Na África, alguns povos nativos preparam uma poção de pimentas, com a qual buscam obter eterna juventude. Para se tornarem mais atraentes, as mulheres adicionam pitadas de pó de pimenta à água do banho. Na Índia e na China, as pimentas do gênero Capsicum começaram a dominar a cozinha e se tornaram o principal condimento da região. Lá as pimentas rapidamente se tornaram fundamentais para a culinária, de tal maneira que os taxonomistas, em 1700, deduziram (por engano) que a China era o local de origem das espécies de Capsicum (BOSLAND; VOTAVA, 2000).
A China lidera a produção mundial, e a Espanha é o maior produtor da Europa. As pimentas continuam a ter grande importância nas Américas, onde a maior parte do que é cultivado é consumido in loco, apesar de o México ser um grande exportador do produto (HEISER JUNIOR, 1995).
As pimentas e pimentões do gênero Capsicum estão intimamente relacionados à riqueza cultural brasileira, são parte valiosa do patrimônio da biodiversidade, e são cultivados em uma imensa variedade de tipos, tamanhos, cores, sabores e pungências. O gênero possui uma grande diversidade genética que pode ser útil tanto para programas de melhoramento quanto para o uso imediato (PEREIRA; RODRIGUES, 2005). No Brasil, o cultivo de pimentas ocorre praticamente em todas as regiões, e tem como principais produtores os estados de Minas Gerais, de Goiás, de São Paulo, do Ceará e do Rio Grande do Sul (MADAIL et al., 2005). Existe uma imensa variação fenotípica para formato, tamanho, cor e sabor de fruto, e também para pungência e arquitetura de planta. Essa variação se reflete também em sua composição nutricional (BOSLAND; VOTAVA, 2000).
A espécie mais relevante no gênero, e mais difundida no Brasil, é C. annuum. Dentro dessa espécie, o pimentão é o tipo mais significante, pois está entre as dez hortaliças mais importantes no mercado brasileiro (CARVALHO et al., 2003). No Brasil, os tipos de pimenta mais comuns e cultivados são: a malagueta (C. frutescens); a pimenta-de-cheiro; a pimenta-de-bode; a cumari-do-pará (C. chinense); a dedo-de-moça; a chifre-de-veado e a cambuci (C. baccatum) (HENZ; COSTA, 2005).
O melhoramento de Capsicum no Brasil é realizado tanto por empresas públicas quanto privadas (WAGNER, 2003). A maior parte dos programas visa obter cultivares de pimentão (C. annuum), e são poucos os programas nacionais de melhoramento de pimentas pungentes. Em geral, são feitas seleções para produtividade, baixa persistência do pedúnculo na planta (para facilitar a colheita), arquitetura da planta, precocidade e resistência a doenças. Os principais métodos de melhoramento utilizados no desenvolvimento de cultivares de pimenta e pimentão são: o método genealógico, o descendente de uma única semente, o retrocruzamento, a seleção recorrente e a produção de híbridos (REIFSCHNEIDER, 2000).
O Brasil é um importante centro secundário de espécies domesticadas de Capsicum, podendo ser observada considerável variabilidade em C. annuum var. annuum, C. baccatum var. pendulum, C. frutescens e C. chinense (REIFSCHNEIDER, 2000). A existência de diversidade genética é a condição fundamental para a obtenção de progresso genético. O desenvolvimento de novas cultivares depende do conhecimento, da preservação e do uso dos recursos genéticos do gênero (REIFSCHNEIDER, 2000). As atividades relacionadas aos recursos genéticos (coleta, caracterização, documentação e conservação) assumem fundamental importância para otimizar o uso imediato desses recursos, e são também essenciais em programas de melhoramento (CARVALHO et al., 2003). É remota a possibilidade de utilização de espécies silvestres de Capsicum em programas de melhoramento, pois existe ampla variabilidade genética nas espécies domesticadas, o que facilita a realização de cruzamentos interespecíficos (WAGNER, 2003).
No Brasil, os principais bancos ativos de germoplasma que conservam os recursos genéticos de Capsicum são mantidos pelas seguintes instituições: Embrapa Hortaliças (Brasília, DF), Embrapa Clima Temperado (Pelotas, RS), Embrapa Amazônia Ocidental (Belém, PA), Universidade Federal de Viçosa (Viçosa, MG) e Instituto Agronômico de Campinas (Campinas, SP).
O mercado para pimentas no Brasil está sofrendo grandes modificações, por causa da exploração de novos tipos de pimentas e do desenvolvimento de produtos com grande valor agregado, como, por exemplo, das conservas ornamentais, geleias exóticas, chocolates com pimenta e outras formas processadas (RUFINO; PENTEADO, 2006).
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